Somos a besta da criação. Temos tanto de divino como de demoníaco. E oscilamos, incompreensivelmente, entre ambos os mundos, fazendo deste um lugar inóspito à esperança e à paz.
Somos assumidamente a única espécie conhecida que mata sem motivo aparente ou que o faz sem o desvario da procura de alimento ou sob o instinto selvagem da proteção e defesa da vida. Matamos porque sim. Porque não gostamos ou aceitamos o outro. A cor da sua pele. As suas origens e crenças. O incómodo que nos causa ou o medo de nos superar. Ou “tão só” porque é um alvo fácil para alimentar guerras ideológicas ou de cariz religioso.
O terrorismo é já a marca indelével do séc. XXI e nada nem ninguém parece capaz de o parar. O engenho da besta humana permite que as ameaças sejam impossíveis de prever ou detetar pois qualquer um é hoje um potencial homicida em qualquer ponto deste planeta doente. E se antes eram as bombas ou os aviões os meios escolhidos, desde há quinze meses que os automóveis de tornaram máquinas de morte.
Desde Nice, onde pereceram mais de oitenta inocentes na brutal investida de um camião, sucederam-lhe Berlim, Londres em duas ocasiões, Estocolmo e agora Barcelona. Em todos os atentados morreram dezenas de pessoas civis e ficaram feridas algumas centenas. E a ameaça tornou-se potencial em qualquer parte da Europa e do mundo.
O odioso Daesh, em aparente estertor, veio reivindicar uma vez mais este horrível massacre de inocentes. Horas depois a polícia catalã conseguiu parar nova ameaça numa estância balnear, não ocorrendo aqui, felizmente, a morte. Mas e que mais se seguirá? A xenofobia está bem viva como se viu em Charlotte nos EUA. A radicalização dos discursos políticos e movimentos sociais agudiza-se e a violência sai à rua num ápice, em protestos de toda a ordem mas que rapidamente perdem a razão quando se entregam à barbárie. A origem deste vocábulo, ligado aos povos Bárbaros oriundos do norte da Europa e Ásia e que ajudaram a terminar com o império romano do Ocidente, está a ser levada a extremos que estes tempos deveriam estranhar e repudiar incessantemente. Mais do que qualquer invasão ancestral, com mortes inocentes, agora faz-se da barbárie uma arma para enviar mensagens ao mundo, matando sem pejo algum o maior número de inocentes que consigam. Quanto maior o caos e a tragédia melhor para os intentos tenebrosos das forças do mal. E estas perceberam há muito a fragilidade da sociedade, a incompreensível banalização da violência e consequente assunção da inevitabilidade destas tragédias e a impotência dos governos para pararem estes atentados. Somos todos alvos potenciais. Sem exceção. E com o turismo de massas, literalmente em qualquer lugar. Foi assim agora em Barcelona com vítimas de 48 nacionalidades diferentes. O impacto é assim amplificado, ferindo uma multitude de países e espalhando assim o medo e terror à escala global, em minutos.
O choque de civilizações é notório. Num mundo pressionado pelo aumento avassalador da população e consequentes problemas de gestão das necessidades primordiais de sustentabilidade das mesmas, o abismo de reais condições de vida e perspetivas leva a uma busca incessante de uma vida melhor. Tem sido assim nos milhares de migrações no mediterrâneo de povos em fuga da guerra e da fome nos países de origem. O médio Oriente e África têm graves problemas de fundo nas suas sociedades e com as dificuldades a aumentarem a fuga torna-se inevitável. A velha Europa é a miríade natural, com o seu ainda glamour dos direitos, liberdades e garantias e um nível de vida inalcançável nessas paragens de origem. Nesta senda a besta mostra as suas garras afiadas, tolhendo mais inocentes fragilizados. Fogem de guerras que matam, são explorados na viagem, morrem nas travessias apinhadas e são despejados em campos de desesperança.
Paralelamente, a besta vai lançando as suas feras e semeia a morte por esta Europa fora, alimentando o medo e o terror à escala global. As televisões repetem as imagens de morte numa espiral doentia e quase macabra, “vendendo” a violência e acabando por amplificar a mensagem que a besta quer duradoura. A besta conhece de perto as fraquezas humanas e a atração pela morte e pelo espetáculo patético e aberrante em que esta se torna nos écrans de milhões de aparelhos ligados online. Serve-se desta fraqueza tétrica para chegar mais longe e por mais tempo.
Não tenho dúvidas que o Inferno, esse lugar horrendo pejado de chamas, dor e sofrimento é este nosso planeta. Não existe outro. Nem num qualquer subterrâneo submundo como na mitologia grega, o Hades, ou na trilogia religiosa abaixo de um purgatório. O Inferno somos nós, humanos. Não tenhamos dúvidas. Mas, espantemo-nos, somos também o céu, ou parte dele. Temos em nós essa dualidade tremenda e o maior dos poderes, o da escolha. A todo o momento podemos sempre escolher, optar e decidir entre o bem e o mal, entre a compaixão e a ganância, entre a solidariedade e o egoísmo, entre a tolerância e a xenofobia, entre o respeito e barbárie. No limite, a escolha entre a união e a solidão, entre o amor e o ódio. E para nossa sorte este inferno é belo e tem o céu em tons de azul para nos confortar da eterna noite lá fora. É belo e pujante de milhares de formas de vida exuberantes e magníficas que estamos a levar à extinção. Somos a praga da vida na Terra. Devoramos, destruímos, aniquilamos, matamos, transformamos a nosso belo prazer e para nossa fruição e satisfação. Como se o planeta pudesse sempre fazer um reset e iniciar-se de novo. Para nosso gáudio. Mas não é assim e num século estamos a destruir mais do que ocorreu em milhões de anos. A um ritmo imparável e que nos levará a um abismo incontornável. De uma ou outra forma, se não se inverterem estas tendências atuais de degradação do planeta e dos seus recursos, a próxima espécie a poder ser extinta somos nós. A transformação está em curso e o mundo como o conhecemos está a desaparecer rapidamente. No entretanto a besta humana anda entretida a fazer da civilização o caos, ateando fogos sociais e étnicos sem olhar a meios. Resta saber se nesta “corrida” ciclópica, entre a fúria da mãe natureza e a guerra de civilizações, qual irá conseguir chegar primeiro à destruição do homem bom, o mesmo que contra todo o mal que sempre existiu, conseguiu fazer chegar até hoje um mundo possível e com futuro.
Como ensinava o velho índio, todos temos dois lobos que vivem em nós, um bom e um mau. Vencerá aquele que nós alimentarmos! Saibam escolher e façam-no enquanto podem. Bem hajam. Paz.