O pior cego não é aquele que não vê mas o que não quer ver. Este velho adágio, nascido da sabedoria ancestral assenta que nem uma luva ao que se está a passar na Auto Europa. A empresa bandeira do investimento externo em Portugal está a braços com um protesto sindical que, no limite, a poderá inviabilizar. Com tudo o que isso acarreta de nefasto para o futuro empresarial no nosso país. Façamos aquilo que parece faltar aos dirigentes sindicais que lideram um inusitado protesto contra o trabalho ao sábado. Paremos para refletir e ponderar o porquê das coisas e a sua justeza e acerto.
Até hoje a comissão de trabalhadores tem conseguido, em concertação avisada com a direção da Auto Europa, achar os melhores caminhos para que os trabalhadores desta unidade estejam satisfeitos com o leque de condições de que beneficiam. Convém lembrar que esta unidade representa a maior empresa de capitais externos a operar em Portugal, dando emprego a centenas de operários que têm, de longe, as melhores condições remuneratórias e benefícios do ramo industrial nacional. Pela própria natureza da unidade de produção automóvel, o trabalho é efetuado por turnos e como tal, trabalhar aos fins de semana é algo intrínseco à normal laboração. Até hoje foram sempre encontradas as melhores soluções para que os benefícios fossem assegurados a quem trabalhava em horários normalmente de descanso. O que se passou então agora de diferente? Temo que apenas os protagonistas são diversos e infelizmente para pior. Não está em causa reduzir a produção e acenar com lay-off, antes pelo contrário, está na calha a produção de um novo modelo para os próximos anos. Então o que mudou? Antes de aventar algumas pistas faço uma viagem no tempo até aos anos 90 do século passado, às unidades de produção automóvel da Ford e da GM na Azambuja. Também aí havia centenas de trabalhadores a auferirem remunerações elevadas e com regalias bem acima da média no sector, mas quando se começaram a sentir os ventos da mudança nos mercados internacionais e o fantasma da crise se agigantou, os sindicatos entraram em força nessas unidades, a exigirem mais e melhores condições para trabalhadores que, em boa verdade, o que desejavam era que as mesmas continuassem por muitos e bons anos a laborar. Mas, com uma aparente cegueira coletiva, estes protestos agudizaram-se e levaram a que as direções dessas unidades as viessem a deslocalizar para países do leste europeu onde lucraram com a mão de obra mais barata e, acima de tudo, de um clima laboral pacífico e focado em produzir. Quem ganhou com todo este triste processo? Tenho dificuldades em perceber se por cá alguém ganhou algo, mas a certeza contundente dos factos trouxe o desemprego para a quase totalidade desses operários que, mesmo com algumas indemnizações, não mais tiveram outras oportunidades de trabalho na sua área de sempre. Para completar esta fotografia, basta visitar a Azambuja e ver que unidades lá operam nos dias de hoje, sobretudo de logística e com condições remuneratórias a anos luz das que nesses tempos esses trabalhadores beneficiaram.
Voltemos a Palmela. Por estes dias ainda não se vislumbram decisões sobre todo este processo mas os cenários em causa estão à vista desarmada. E se, porventura, a direção da Auto Europa decidir não alinhar nestes protestos e se cansar deste clima nocivo, vindo a decidir encerrar esta unidade e deslocalizá-la para um dos muitos países que se perfilam para a receber de braços abertos, a pergunta que eu faço é simples: então quem beneficiou destes protestos sindicais? Em última análise só mesmo os próprios sindicatos e o seu protagonismo, ferido e incomodado pelo sucesso consecutivo de uma mera comissão de trabalhadores. Este sucesso ensombrava a própria razão de existir dos sindicatos, esvaziando-os de sentido num mundo em que cada vez mais vão perdendo filiados. Porque quanto a perdas, convenhamos que o lote é vasto. Em primeira linha perderão todos os trabalhadores desta grande unidade industrial. Irão para o desemprego e dificilmente voltarão a ter oportunidade semelhante. Numa segunda linha todas as empresas satélite e seus funcionários, que operam como fornecedores diretos desta unidade e que vivem na sua sombra. Numa terceira linha todo o comércio e serviços da região, pela perda notória de poder de compra de tantos moradores dessa região alargada. E sem querer entrar em análises mais arriscadas, perde o país e o futuro do mesmo. Pois se, porventura, for este o caminho a seguir pela direção há que entender as consequências gravosas de tal saída do país. Portugal ficará manchado a negro no panorama do investimento empresarial internacional e dificilmente haverá interessados em apostar num país que protesta mais do que trabalha! A verdade é que dessa imagem ninguém nos libertará e esse fardo irá ser suportado pelas gerações vindouras.
Continuemos a reflexão. Portugal tem tido, principalmente desde o 25 de Abril, tentações de esquerda ainda ligadas a um marxismo que quase só por cá sobrevive. E que constantemente culpa o capitalismo e os patrões, esses “papões” demoníacos que mais não fazem do que maltratar e explorar os pobres dos trabalhadores. Em abono da verdade sabemos que o sistema capitalista não é de todo perfeito e que existem abusos e vários campos onde pode e deve ser melhorado. Estamos cá para lutar e providenciar essas mudanças. Mas respeitando que existem diferentes visões e que, com bom senso e vontade negocial, é sempre possível achar entendimentos e soluções que sirvam ambas as partes. Os litígios nunca servem ninguém a não ser os que, por razões nem sempre curiais, vão vivendo desses expedientes. A verdade é que antes de quaisquer razões particulares, são as do interesse nacional que devem ser aqui acauteladas. E cabe a um governo de apoios nessa mesma esquerda sindicalista, saber dissociar o que é imperioso do que o não é, amansando as “feras” sindicais e defendendo o que é mais crucial, a manutenção desta unidade produtiva em solo nacional e tudo fazendo para que os gestores da mesma se sintam confortáveis nessa decisão. Tudo o que puser esta lógica em causa deve ser terminado e rapidamente. Se o governo não conseguir este desiderato, mantendo os seus apoiantes de governação calmos e avisadamente focados no superior interesse nacional, então terminará com estrondo a viabilidade da dita “geringonça” e o governo terá de cair. Porque estas fraquezas na gestão política do acordo de governabilidade terão sido assim, mais do que a doença, a morte do futuro empresarial em Portugal. Com tudo o que de mau isso significará para o país e a sua viabilidade financeira e económica. Faço votos de que esta cegueira doentia que vai alastrando em torno da Auto Europa não leve a um desfecho evitável e a todos os títulos incompreensível. Portugal merece mais sabedoria e com certeza melhores políticos e decisores, menos agarrados a ideologias e mais focados em factos e na sustentabilidade de um país. É o futuro que está em causa. Libertemo-nos desta cegueira nebulosa que nos atrofia há tempo a mais.