Em Portugal é assim, deslumbramo-nos com coisas próprias de um mundo em aceleração constante e chamam a si os holofotes do futuro. Foi assim com a Web Summit, o evento tecnológico e de empreendedorismo que reuniu milhares de pessoas em Lisboa. Foi tema principal durante alguns dias e ficámos com a sensação de que quem lá não esteve passou ao lado de algo maior e imperdível. O entusiasmo dos participantes, os comentários nas redes sociais e a cobertura mediática traduziam esse quase épico espírito de comunhão com a magia da tecnologia e as imensas oportunidades de ganhar esse futuro dourado que todos ambicionam. Mas será que é mesmo assim?
Se olharmos para o primeiro-ministro e a sua caricatural presença diríamos que sim, que era ali o centro do mundo. A cena do abraço coletivo, a lembrar outros mega eventos de cariz menos high-tech e mais religioso, transportou-nos numa catarse hipnótica e messiânica que a todos envolveu, numa qual arca salvífica e nos concedeu o eden. Mas que “paraíso” é este? O que o robô Sophia nos promete, de nos ir “roubar” os empregos para logo nos confortar de seguida ao lembrar que “trabalhar é uma seca”? Ou será a ilusão de que as famigeradas “startups”, tão em voga, serão a salvação da economia e dos eternos problemas do desemprego? Ou será ainda a ideia de que mais cedo que tarde, todos iremos ter mais tempo para desfrutar da vida, ficando as máquinas a trabalhar por e para nós?
Sinceramente, não vi respostas para estas e outras questões e nem sequer preocupação com alguns dos cenários que se colocam nos horizontes próximos. A inteligência artificial, doravante IA, está em crescimento supersónico e não irá demorar muito até que a sua presença se torne impactante na vida de todos nós. Os automóveis auto-conduzidos estão a chegar, as máquinas que interagem connosco seja a tirar um café ou a litigar por nós em questões jurídicas, já não são ficção científica, já existem e serão parte do quotidiano em poucos anos. Se estamos preparados para tais realidades? Entendo que não, pois o mundo está a avançar em muitas velocidades diferentes e as clivagens entre mundos está a agudizar-se. Os progressos da tecnologia estão a deslumbrar o mundo mas a deixá-lo em suspenso da próxima novidade, da tal que essa sim, irá revolucionar o modo como vivemos, trabalhamos, comemos e dormimos. De repente parece que estamos a escorregar para dentro de um filme futurista, daqueles que durante muitos anos alimentaram o cinema e séries de culto num mundo ainda sem a internet.
Todos querem agarrar o futuro e não ficar fora das suas promessas douradas e esse é o deslumbramento maior que leva a que muitos vejam nestas cimeiras o toque de Midas. Porque o mundo lá fora está mais feio, violento e complexo. As guerras continuam no médio Oriente, a fome continua a matar milhões, os refugiados Rohinga são aos milhares a fugirem da antiga Birmânia, agora Myanmar e do seu regime de ferro. No Iemen sete milhões de pessoas dependem da ajuda internacional para poderem simplesmente sobreviver. O terrorismo ensombra-nos os dias, a nova guerra fria entre os EUA e a Coreia do Norte continua viva para lá das cimeiras políticas e festivas a Oriente, África continua com os problemas de sempre e as suas muitas feridas sociais bem abertas, a Venezuela tenta estancar a queda livre e uma potencial guerra civil. E o clima ruge, entre furacões e secas extremas que também a nós nos tocam e assolam, dramaticamente.
Face a isto a tecnologia surge como salvadora e benfeitora maior, a promessa limpa e segura de que iremos conseguir mudar o mundo e torna-lo um lugar melhor. Assim seja mas, até lá, muita coisa irá acontecer por certo e entre elas há que perceber a forma como iremos ocupar todos aqueles que as máquinas irão deixar sem trabalho. Não por acaso já se vai falando num subsídio estatal permanente para todos de modo a assegurar a sobrevivência. Esse cenário está em cima da mesa e muitas outras questões essenciais terão de lá estar igualmente. A gestão da água e dos alimentos será cada vez mais determinante face ao contínuo crescimento da população mundial e à enorme pressão sobre a produção e os recursos, já exauridos, de um planeta sujo e doente. Ver Nova Deli sob um manto de fumo espesso é apenas mais um episódio que já há muito grassa na China e que vai influenciando o clima planetário. Mais do que “apps” e “startups” o mundo precisa do melhor da tecnologia para o libertar da poluição, do aquecimento asfixiante, das desigualdades no acesso aos bens essenciais e na melhoria da qualidade habitacional e de saneamento básico. Quando assim for então sim haverá razões para deslumbramento. Até lá, estas cimeiras deveriam partir por assumir que nove em cada dez startups fecham ao fim de um ano e que só com muito apoio, trabalho e contínuo investimento as demais podem ter sucesso. Cimeiras sim, mas com os pés no chão e mais “uvas e menos parra”. Portugal pode e deve investir em tecnologia que é útil entre portas e fora delas. Gestão da água, energia dos oceanos, investigação marítima em efetiva profundidade, gestão do território, vigilância eletrónica, adaptação das espécies a um novo clima mais seco, entre tantas outras. Soubemos há uns bons anos inventar a Via verde para as autoestradas, saibamos agora inventar uma nova para o futuro, mais limpo, melhor gerido e mais sustentável. Esse é que deve ser o nosso deslumbramento.