Crónica de José Caria Luís
Sendo os portugueses por demais parecidos com os marroquinos, não seria de estranhar que fossem por estes muito considerados e recebidos em suas casas, sem pompa, mas com circunstância. Mas só na maneira de ser, porque, no que concernia à folia e à galhofa, nada nos ligava. Foram muitos os séculos de distanciamento. Mesmo assim, quando um tal “Desejado” tentou uma última aproximação, a coisa deu para o torto e tudo se esfumou em nevoeiro.
Os marroquinos, não tendo santos para festejar – os profetas não são santos -, também celebram as suas datas históricas, como, por exemplo, o de maior expoente popular: “La fête du mouton”. Como se percebe, em termos de comezainas e rituais religiosos, não deixam de o fazer. Fui a alguns desses eventos e constatei que a ementa era sempre idêntica: couscous, tagine de galinha e cordeiro assado no espeto rotativo, tudo manjado à mão. Não havia mesa, nem pratos nem talheres. Era numa bandeja prateada, colocada sobre uma carpete persa, onde se comia. O vinho, que era só para nós portugueses, ia connosco. Nenhum dos anfitriões tinha livre acesso a bebidas alcoólicas. Fosse ele, algum dia, depositário ou utilizador, além de ser excomungado como muçulmano, ainda se candidatava a apanhar umas vergastadas nas plantas dos pés e passar uns meses na cadeia. Mas o curioso é que o anfitrião convidava os vizinhos para assistirem ao repasto. Assistiam, mas não comiam. Ali, à nossa volta, em jeito de ritual islâmico, mas sem rezas nem salamaleques, apenas nos contemplavam. Mulheres, nem vê-las! Nem sequer a dona da casa. Após demorado repasto, e em jeito de agradecimento, era meu hábito deixar uma garrafa de vinho tinto ao anfitrião, o que para ele era ouro negro. Sendo proibido, era mais apetecido.
No dia a dia, nos locais de trabalho, a sua alimentação não passava de um pão achatado, acompanhado por um chá de menta ou um pacote de leite, por vezes azedo. Talvez por isso não tenha conhecido um único trabalhador que fosse anafado. Porém, durante o Ramadão, o suplício era bem maior, uma vez que, da alvorada ao sol-pôr, nem comida, nem gota de água, nem sexo. Nada de nada. Eles nem sequer iam à praia, só para que não corressem o risco de molhar os lábios…
Recordo certo cerimonial para que fui convidado – este sim, pomposo -, em que o mote do festim era a circuncisão de um menino, creio que, de 6 anos. Porém, desta vez, tratava-se de gente de média-alta burguesia arabesca, daquela que, se não era de parentesco próximo de algum Califa, mais parecia. Encerrado que estava o terrível ritual do escortinhar o prepúcio do precoce mártir, lá vinha o garoto montado num cavalo branco, a dar a volta à cidade, com aspeto de mais morto do que vivo, acompanhado pela família, que se vangloriava ostentando um visível ar triunfal. Com elas, mulheres e moçoilas, entoando aquelas típicas gargarejolas árabes. Ao contrário, a cara de sofrimento do miúdo dava para perceber a quão sádico e violento tormento tinha sido submetido. Mas nem por isso se perdeu o apetite para a ceia.
Histórias das Arábias, nos anos 1396/1399 para eles; 1976/1979 para nós.
*Artigo publicado na edição de setembro do Jornal de Cá.