A cruzada concelhia em Marrocos (VI)

Opinião de José Caria Luís

Tal como em Portugal abundavam cães e gatos vadios, em Marrocos eram os burros anões que vagueavam, terrenos fora, sem donos nem controlo. Em redor da obra, eles aí estavam a pastar terra e pedras, já que a vegetação rareava. Foi por isso que o colega Lima Remédios – um técnico do Laboratório de Inertes e Betões –, tirando partido da récua da burricada ao ar livre, ali mesmo à mão de semear, resolveu deitar a mão a um daqueles exemplares. O colega Remédios, como remédio para colmatar a afronta que a direção da obra lhe fizera, ao não lhe disponibilizar uma carrinha Renault 4L, tal como cada um de nós, chefias, tínhamos, ordenou ao seu adjunto Samir Driss, que fosse ao armazém da obra, pegasse numa ponta de corda de sisal e fosse em demanda de um daqueles jumentos que por ali perto vagueavam.

Era, pois, cavalgando montado no dorso daquele minúsculo asno, sem selim nem albarda, com os pés arrastando pelo chão, com um largo chapéu de palha na tola e com o restante equipamento a tiracolo, que o Lima percorria e parava em todas as centrais de betão da obra, ora fazendo slumps, ora recolhendo amostras, por meio de fabrico de cubos de betão, para análise laboratorial. Em jeito de retaliação, durante o périplo, debaixo de um monumental coro de assobios e galhofa geral, o Lima, qual Sancho Pança, percorria toda a obra, naquela ridícula figura. Os marroquinos, por demais sisudos, decerto que nunca tal haviam visto, mas, contaminados pela onda de folia tuga, desataram a rir a bandeiras despregadas. Esse comportamento, em tempos de Ramadão, poderia acarretar-lhes alguns dissabores políticos e religiosos, mas como é que os pobres magrebinos se podiam conter perante tal cenário?

O que o pessoal queria era divertir-se, fosse à custa do Lima Remédios ou de um outro qualquer bacano, de preferência cismático, carrancudo, daqueles que não alinham e afinam por tudo e por nada, porque cenas caricatas havia-as quase todos os dias, tendo os conterrâneos Albino Parente e Zé Vieira elaborado umas e colaborado noutras. Todavia, aquela que maior celeuma terá levantado, também teve como mote gado asinino, tendo tido como protagonistas uma jovem jumenta e o vilafranquense Carlos Silva.

Este meu colega, técnico de gruas, com caraterísticas a roçar o snobismo, passava parte do serão no bar, no seu cantinho favorito, lendo tudo o que apanhava à mão: livros eruditos, jornais franceses, revistas, tudo ele devorava com avidez. Era, também, interessado em motonáutica e astronomia. Isso, para quem só sabia jogar sueca e matraquilhos, originava uma certa inveja, se não repúdio. Perante tal perfil, seria certo e sabido que o Carlos Silva, mais dia menos dia, entraria na esfera das vítimas dos zombeteiros.

O Carlos era um perfeccionista. Desde a mala equidistante sobre o armário, pontas das toalhas em simetria sobre o varão toalheiro, dobra do lençol paralela e bem vincada sobre a coberta… Colocou duas belas e alvas peles de borrego, uma de cada lado da cama, tipo bandam, a fazer de tapete, onde, por certo, daria imenso prazer afagar os pés, não só de humanos, tal como se verá na próxima edição.

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*Artigo publicado na edição de junho do Jornal de Cá.

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