Crónica de José Caria Luís
Formar equipas para fazer parte integrante de um grande empreendimento por terras do Magrebe, em zona pouco menos que deserta, não o era, de todo, simples. Um complexo fabril de duas linhas, pelo processo de via-seca, que não passaria de uma obra normal, não fora o local desértico designado pelo monarca Hassan II, com Chaminés, Torres de Arrefecimento, Baterias de Silos, Via e Cais de Carregamento de Vagões, além dos Edifícios Administrativos. Ainda que a empresa Construções Técnicas, S.A.R.L., por demais habituada a executar obras de grande envergadura, tivesse nos seus quadros uma vasta gama de técnicos das mais variadas especialidades e um grandioso parque de equipamento, verificou-se, sem surpresa, que o maior handicap seria o recrutamento e subsequente relacionamento, entre as chefias e os mais de mil operários magrebinos previstos. Os encarregados de 2ª, os arvorados e capatazes, que eram quem iria enquadrar o pessoal nativo, na sua maioria não “pescava” uma única palavra de francês, quanto mais de árabe. Mas, ao que se diz nas cinco partidas do Mundo, se o português sempre arranjou maneira de se desenrascar, não era agora que deixaria de ser acreditado como tal.
O capataz Mário Russo foi o pioneiro. Natural da nossa vizinha Vila Nova da Rainha – terra apelidada das três mentiras -, pondo em prática a sua veia e raça ribatejanas, foi logo o primeiro a resolver o problema, que era mesmo real. O Mário, pessoa pouco letrada, perante o facto consumado de lhe ter sido atribuída uma equipa de três portugueses e vinte marroquinos, ainda sentiu algum constrangimento, mas, como ninguém lhe podia valer, valeu a sapiente solução posta em prática. É que o nosso Russo não atinava com os nomes dos seus subordinados nem por nada. Zangado, rogando pragas intraduzíveis, a torto e a direito – vim a saber que algumas me eram dedicadas – reuniu as suas hostes, em círculo, pôs-se no centro e perguntou: – Tu, como te apelas? – e o marroquino respondeu: – Je m’appelle Abdeslam.
As respostas iam-se sucedendo: – Mustafá; Slassi; Faruk; Mohammed… O Mário, já possuído, berrou: – Hei, alto aí! Vocês, aqui, não são nada disso!
Tirando partido da convencional sinalética, alinhou-os em fila indiana, recomeçando na identificação: – Tu, como te apelas?
– Je m’appelle Abdeslam
– E ordenou: – Tu apelas-te João! – e continuou: – Tu, como te apelas? Je m’appelle Mustafá.
– Eras, mas agora és o Atónhe! E o desfile continuou…
Foi, pois, neste enquadramento, que se seguiram os islamitas “crismados” com os nomes de Pedro; Carlos; Augusto; Zé… Assim, até aos vinte fulanos.
Quando o engenheiro-fiscal marroquino estava por perto e ouvia o Russo a chamar os seus patrícios por nomes estranhos, perguntava-me: – Que c’est que il dit? E lá tinha que se explicar ao Sr. Oujdi (lá, ao contrário de cá, não se tratava ninguém por engenheiro) o esquema utilizado pelo Mário Russo, Marius para os marroquinos, para dar as ordens aos seus discípulos.
Reconhecendo o sucesso obtido pela perspicácia do Russo, não tardou que outras chefias enveredassem por idêntico sistema.
*Artigo publicado na edição de agosto do Jornal de Cá.