A cruzada concelhia em Marrocos (VIII)

Crónica de José Caria Luís

Formar equipas para fazer parte integrante de um grande empreendimento por terras do Magrebe, em zona pouco menos que deserta, não o era, de todo, simples. Um complexo fabril de duas linhas, pelo processo de via-seca, que não passaria de uma obra normal, não fora o local desértico designado pelo monarca Hassan II, com Chaminés, Torres de Arrefecimento, Baterias de Silos, Via e Cais de Carregamento de Vagões, além dos Edifícios Administrativos. Ainda que a empresa Construções Técnicas, S.A.R.L., por demais habituada a executar obras de grande envergadura, tivesse nos seus quadros uma vasta gama de técnicos das mais variadas especialidades e um grandioso parque de equipamento, verificou-se, sem surpresa, que o maior handicap seria o recrutamento e subsequente relacionamento, entre as chefias e os mais de mil operários magrebinos previstos. Os encarregados de 2ª, os arvorados e capatazes, que eram quem iria enquadrar o pessoal nativo, na sua maioria não “pescava” uma única palavra de francês, quanto mais de árabe. Mas, ao que se diz nas cinco partidas do Mundo, se o português sempre arranjou maneira de se desenrascar, não era agora que deixaria de ser acreditado como tal.

O capataz Mário Russo foi o pioneiro. Natural da nossa vizinha Vila Nova da Rainha – terra apelidada das três mentiras -, pondo em prática a sua veia e raça ribatejanas, foi logo o primeiro a resolver o problema, que era mesmo real. O Mário, pessoa pouco letrada, perante o facto consumado de lhe ter sido atribuída uma equipa de três portugueses e vinte marroquinos, ainda sentiu algum constrangimento, mas, como ninguém lhe podia valer, valeu a sapiente solução posta em prática. É que o nosso Russo não atinava com os nomes dos seus subordinados nem por nada. Zangado, rogando pragas intraduzíveis, a torto e a direito – vim a saber que algumas me eram dedicadas – reuniu as suas hostes, em círculo, pôs-se no centro e perguntou: – Tu, como te apelas? – e o marroquino respondeu: – Je m’appelle Abdeslam.

As respostas iam-se sucedendo: – Mustafá; Slassi; Faruk; Mohammed… O Mário, já possuído, berrou: – Hei, alto aí! Vocês, aqui, não são nada disso!

Tirando partido da convencional sinalética, alinhou-os em fila indiana, recomeçando na identificação: – Tu, como te apelas?
– Je m’appelle Abdeslam
– E ordenou: – Tu apelas-te João! – e continuou: – Tu, como te apelas? Je m’appelle Mustafá.
– Eras, mas agora és o Atónhe! E o desfile continuou…

Foi, pois, neste enquadramento, que se seguiram os islamitas “crismados” com os nomes de Pedro; Carlos; Augusto; Zé… Assim, até aos vinte fulanos.

Quando o engenheiro-fiscal marroquino estava por perto e ouvia o Russo a chamar os seus patrícios por nomes estranhos, perguntava-me: – Que c’est que il dit? E lá tinha que se explicar ao Sr. Oujdi (lá, ao contrário de cá, não se tratava ninguém por engenheiro) o esquema utilizado pelo Mário Russo, Marius para os marroquinos, para dar as ordens aos seus discípulos.

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Reconhecendo o sucesso obtido pela perspicácia do Russo, não tardou que outras chefias enveredassem por idêntico sistema.

*Artigo publicado na edição de agosto do Jornal de Cá.

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