À espera de um milagre

O Natal pode ser um “balão de oxigénio” mas a situação do comércio local exige uma estratégia que envolva todos os intervenientes. Há hábitos que mudaram e hábitos que têm de mudar

 

Com o início da contagem decrescente para o Natal começa a sentir-se no ar a excitação própria da época. Os preparativos para a ceia, os pormenores da reunião familiar e os inevitáveis presentes entram na agenda de todos nós. Há uma dezena de anos esta era uma época de ouro para os comerciantes que, para além de verem a faturação duplicar e muitas vezes triplicar, aproveitavam para escoar stocks e realizar capital que lhes permitia enfrentar o ano seguinte, com alguma tranquilidade. No Cartaxo, a rua Batalhoz era por natureza o pólo de atração, pois o comércio estendia-se ao longo da rua e ali se podia encontrar de tudo um pouco, numa oferta variada e para todas as bolsas e gostos. Com o passar dos anos outras zonas da cidade viram chegar novas lojas, com destaque para a rua Serpa Pinto e para o eixo da avenida João de Deus com a rua Dr. Manuel Gomes da Silva, sobretudo depois do crescimento urbanístico naquela zona da cidade.
Hoje, quem fizer uma ronda pelo comércio tradicional encontra um cenário bem diferente do que se vivia, até há pouco menos de vinte anos. A inevitável e já quase insuportável crise económica que vivemos, aliada a grandes alterações nos hábitos de consumo e ao resultado de políticas autárquicas que se revelaram desastrosas, vieram mudar o cenário de festa e instalar o desânimo no pequeno comércio que luta agora, não para enfrentar o futuro mas para sobreviver ao presente.
Na rua Batalhoz contam-se mais de 80 comerciantes a que se juntam pequenas oficinas, clínicas, bancos ou lojas de serviços de advocacia ou seguros, a totalizarem uma centena de pontos de negócio. Um verdadeiro centro comercial ao ar livre que, à partida, tinha tudo para dar certo mas que, se falarmos com os diariamente ali trabalham, enfrenta hoje em dia sérias dificuldades.
Com cerca de uma vintena de lojas de comércio tradicional cada um, os eixos definidos pela rua Serpa Pinto por um lado, e o cruzamento da Av. João de Deus com a rua Dr. Manuel Gomes da Silva por outro, são igualmente pontos importantes nesta temática.

José Joaquim
“As alterações no centro da cidade prejudicaram em 80 por centro o comércio local”

Fernando Felício
“Se isto se mantiver assim, daqui a dois ou três anos esta é uma terra morta”

Amândio Pina
“Isto tudo tem ciclos. Penso que pior é difícil, portanto vai melhorar”

Edite Costa
“Falta vida à cidade. É uma terra que já foi tudo e que hoje nem se ouve falar”

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Cecília Tavares
“Não são apenas os cortes nos salários que nos afetam. Há ainda os encargos fiscais que são uma brutalidade”

Vanda Monteiro
“Nós é que temos de inovar e andar para a frente. Quando vou a Lisboa trago sempre ideias novas”

Rua Batalhoz
Pela sua dimensão começámos a nossa ronda pela rua Batalhoz. Logo no início encontramos José Joaquim, proprietário da Batalhoz Moda. Quando lhe pedimos que nos dê a sua perspetiva para a origem deste mau momento não hesita: “o Cartaxo perdeu o poder de compra. Depois há a quebra da construção e também de alguma indústria aliadas à circulação urbana que deixou de trazer pessoas ao centro da cidade”, afirma, explicando que “as alterações produzidas no centro da cidade prejudicaram em 80 por cento o comércio local. Até para ir para o novo parque de estacionamento é difícil. Só quem vem de Santarém tem entrada direta. Para o centro da cidade não há uma entrada. A isto somam-se os cortes nos salários e o desemprego”. Para este comerciante, há mais de 30 anos a trabalhar, primeiro como empregado e mais tarde com estabelecimento próprio, “há dez anos os comerciantes ainda viviam bem. A partir daí, algumas reservas que ainda existiam foram aplicadas para se ir sobrevivendo e a verdade é que agora isso acabou. De 2000 a 2006 ainda tivemos anos bons. A partir daí começou a cair e nestes últimos anos tem sido o descalabro”
Apesar de tudo José Joaquim alinha pela tónica que encontrámos um pouco por todo o lado quando afirma que não vai baixar os braços. “Não acredito que melhore tão depressa, mas continuo a trabalhar para dar a volta à minha vida e tentar cumprir os meus compromissos”, garante.
Amândio Pina, há 56 anos à frente dos destinos da Ourivesaria Conceição e, mais tarde da Ótica Pina, também admite que “o comércio está a viver com muita dificuldade”. E lembra que “o Natal costumava ser uma época melhor e mal de nós se este ano não vier animar as vendas um bocado. Vamos fazer algumas vendas, mas não é o que era noutros tempos, nem para lá caminha”. Para o comerciante, “o sistema que se montou à volta do Cartaxo, e de outras terras também, deixou o comércio tradicional sem possibilidade de sobreviver, rodeado de hipermercados, sem estacionamentos, sem acesso às lojas” Por outro lado, sugerindo causas que têm raízes mais profundas, Amândio Pina lembra que “enveredámos por caminhos que querem a concentração no grande comércio, por causa do IVA, e o pequeno comércio será sempre prejudicado. Em Bruxelas decidiram que tínhamos pequenas lojas a mais e que tínhamos de encurtar uns milhares de lojas” defende. Mas para este comerciante de longa data há outras questões importantes que não devem ser descuradas: “há o problema da falta de formação. Antigamente havia comerciantes que se formavam a trabalhar desde pequenos. Isso hoje é impossível mas era uma realidade importante e depois havia as escolas comerciais que entretanto acabaram e estamos a sentir essa falta de pessoas com formação”. E remata o seu raciocínio com uma réstia de esperança: “isto tudo tem ciclos. Penso que pior é difícil, portanto vai melhorar, mas quanto tempo é que vai demorar a mudar é que não consigo prever”.
Quando perguntamos como é que as coisas se passavam antigamente, nada melhor que procurar respostas junto de Fernando Felício (no dia em que este jornal chega às bancas, 5 de Dezembro, o seu estabelecimento, Aguiar e Felício, cumpre 54 anos de vida) que há 64 anos trabalha na rua Batalhoz. Hoje, com a colaboração da filha, Margarida, ainda se mantém em atividade e recorda que “a grande época de vendas não era o natal, mas a Feira dos Santos. Era uma tradição durante a qual as pessoas dos arredores convergiam para a cidade. Eram tempos diferentes, as populações não tinham acesso a coisas que têm hoje e era na feira que se vinham abastecer. Nessa época a rua Batalhoz era um centro comercial com tudo o que se possa imaginar. Logo que a Feira foi deslocada do centro que o comércio local começou a perder importância e depois, somou-se a isto, toda esta conjuntura. Mudaram-se hábitos de consumo e de vida. As pessoas têm hoje uma forma diferente de viver”. Margarida Felício, que acompanha o pai aponta responsabilidades na crise do comércio para o isolamento a que o centro foi votado. “Não sei onde foram buscar esta ideia, mas a verdade é que todas as experiências que fizeram noutras cidades não resultaram. Já se sabia que não ia funcionar” diz Margarida Felício. E o pai conclui que “se isto se mantiver assim, daqui a dois ou três anos esta é uma terra morta. O poder esteve entregue a indivíduos que só se preocupavam com os seus interesses e não com o interesse comum. Se quiserem minimizar os estragos a solução é abrir a Nacional 3 e mudar o sentido de trânsito da Batalhoz”.

Rua Serpa Pinto
Depois de subirmos e descermos a Batalhoz, rumámos à rua Serpa Pinto onde a situação de quebra de vendas provocada pela crise é idêntica à de outras zonas da cidade, e do país, mas onde as queixas relativas ao trânsito local não são as mesmas dos comerciantes da Batalhoz. O corte da Nacional 3 não é bem aceite mas os comerciantes por nós contactados preferiram remeter-se ao silêncio. Ali, talvez pela proximidade de instituições bancárias, que atraem movimento e pela circulação de trânsito mais liberta, o segredo mantém-se como alma do negócio.

Rua Dr. Manuel Gomes Silva
É então chegada a altura de tentar perceber qual o sentimento dos comerciantes da zona do cruzamento da avenida João de Deus, com a rua Dr. Manuel Gomes da Silva. É aí que Cecília Tavares, gere há 19 anos a Boutique 2070 e garante que o negócio “está pior que o ano passado”. Embora a zona onde tem a loja sofra menos o impacto que as alterações ao trânsito trouxeram à cidade, a comerciante afirma que a situação é “desmotivante, por falta de possibilidade de as pessoas comprarem”. E vai mais longe ao afirmar que “não são apenas os cortes nos salários que nos afetam. Há ainda os encargos fiscais que são uma brutalidade e o dinheiro que o Estado usa e que não conseguimos receber como o P.E.C. (Pagamento Especial por Conta), tudo junto torna a situação muito difícil. Estamos a viver para pagar impostos e vivemos no limite” garante.
A opinião de Edite Costa, responsável pela perfumaria Espalha Aromas é que “as pessoas perderam o hábito de comprar no comércio tradicional, fogem da rua, fogem do frio e procuram mais os centros comerciais” diz, acrescentando que no caso do Cartaxo “falta vida à cidade. É uma terra que já foi tudo e que hoje nem se ouve falar. A cidade é um dormitório porque não há indústria e noutras áreas também há desemprego. As pessoas vivem cá mas trabalham fora daqui. Percebe-se na movimentação do final do dia que as pessoas estão a regressar a casa vindas de fora”. A perfumaria tem ainda constrangimentos adicionais. “É uma área onde acaba por se sentir mais a crise, porque é sentida como produto de luxo. Estamos a tentar mudar a ideia de que a perfumaria só tem produtos de luxo a mais de cem euros e para isso já dispomos de um leque de ofertas, a preços mais acessíveis”. Uma das soluções apontadas por Edite Costa é a adaptação dos horários do comércio às novas realidades. “É uma mudança que implica a participação de todos. Tem de ser geral. Devíamos definir novos horários para o comércio porque ficaríamos todos a ganhar” sugere.
À frente da “Padeirinha do Cartaxo” encontramos Vanda Monteiro, uma comerciante que apesar de afirmar que “o mês de Natal é um mês normal porque as pessoas não têm dinheiro para gastar mais”, não faz cenários catastrofistas, mas identifica o aumento do IVA e a perda de poder de compra originada pelos cortes salariais como os grandes responsáveis pela situação que se vive. “Está a voltar-se ao antigo e as pessoas estão a fazer coisas em casa”, explica. “Temos de inventar” sugere, “eu, por exemplo, passei a vender bolos à fatia, passei a abrir todos os dias. Nós é que temos de inovar e andar para a frente. Quando vou a Lisboa trago sempre ideias de coisas novas que posso adaptar aqui. Estamos muito agarrados ao tradicional e neste momento é preciso cativar o cliente de outro modo”.
Enquanto não chegam as grandes soluções, e a par de todas as iniciativas individuais de promoção do comércio local, a Câmara Municipal preparou um programa de animação para o mês de dezembro que contempla animação de rua com atuações de bandas (Sociedade Filarmónica Incrível Pontevelense, Sociedade Cultural e Recreativa de Vale da Pinta, Sociedade Filarmónica Ereirense), e grupos (Grupo Coral os Alentejanos no Cartaxo, Grupo Coral da Universidade Sénior do Cartaxo), cinema e teatro infantil, exposições concertos (Concerto de Natal, na Quinta das Pratas e Concerto Solidário das AEC, no Ateneu). Destaque para o Mercadinho de Natal que todos os sábados de manhã vai animar o Mercado Municipal e para o carrossel instalado na Praça 15 de Dezembro. Claro que as iluminações de Natal, este ano asseguradas pela Câmara Municipal, vão dar o brilho possível às ruas e ao comércio local. Os comerciantes agradecem mas garantem estar à espera das grandes alterações que possam, um dia, devolver a vida ao centro do Cartaxo.

 

Luís Rosa-Mendes

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