Por Vânia Calado
Saíam acompanhados do cheiro enjoativo a leite quente. Todas as manhãs, leite fervido com a nata espessa a vir ao de cima, e o que houvesse no naco de pão. Isso ou o pão embebido no leite para encher o estômago. Depois, faziam-se ao caminho com o aviso de sempre:
– Tomem conta das meninas
Era o tomavas, era o que era. Eles bem que abanavam a cabeça como se concordassem com o que lhes era dito, mas ainda estavam sob o olhar das mães e já se tinham esquecido. Elas que se valessem.
Saíam todos juntos e mais se iam juntando pelo caminho. Perdia-se a conta aos miúdos que por ali nasciam a cada ano que passava. A cada porta, o aviso reforçado:
– Tomem conta das meninas – e eles a responder com o mesmo aceno calado.
Andavam todos pelas mesmas idades. A maioria ia descalço, tão habituados aos pés nus que nem sentiam as pedras, uns quantos tinham uma mala que levava quase nada e todos iam de bata branca que algumas faltas a professora não admitia. Eles eram todos mais altos do que elas, mas nem isso lhes pesava na consciência quando as deixavam para trás. Ainda se avistava a torre da igreja e já tinham acelerado o passo deixando para trás as meninas que deviam cuidar.
Elas, miuditas de idade e tamanho, não se preocupavam com aquele abandono premeditado. Era assim todos os dias, tão certo como as horas que o sino anunciava, e elas já não contavam com outra coisa. Aliás, até preferiam que assim fosse. Que eles se fizessem ao caminho, no passo apressado para chegar a lado nenhum, que elas ali ficavam, no seu passo miúdo e brincadeiras que não lhes interessavam a eles, tão adultos naquela meninice que não queriam assumir que ainda tinham.
Não demorou a que o barulho do motor se fizesse ouvir. Atrás delas, o roucar cavernoso denunciava a dificuldade em transpor aquela subida acentuada que só pernas novas aguentaram sem reclamar.
– Mas vocês vão sozinhas?
E mais não era preciso para que elas subissem para o autocarro que trazia quem vinha do trabalho e levava quem ia pegar a seguir. O condutor já as conhecia e elas não se faziam rogadas à oferta de boleia que as levava rua acima, a passar os rapazes que as tinham deixado entregues a si mesmas. Da torre da igreja chegava o sinal. Eram 8h30 da manhã.