A primeira edição da Festa do Vinho do Cartaxo aconteceu há 30 anos e foi um sucesso. A dedicação e o empenho de todos os intervenientes, neste evento, ainda que com meios reduzidos, contribuíram para honrar o vinho do concelho e para melhorar a sua qualidade
Estávamos em finais dos anos 80 quando aconteceu a primeira edição da Festa do Vinho do Cartaxo. Mais precisamente em 1988, dava-se início a um certame que ainda nos dias de hoje continua a atrair milhares de visitantes, que ali provam o vinho, saboreiam a gastronomia tradicional e apreciam a animação musical. Mas os primeiros anos foram diferentes, lembrar-se-ão muitos dos que os viveram. E para relembrar esses tempos, que remontam ao final do século passado, falámos com algumas pessoas que intervieram na festa desde o início, ouvimos o responsável máximo do evento, o então presidente da Câmara, Renato Campos, assim como pesquisámos alguns documentos de arquivo municipal, do final dos anos 80, que ajudaram a retratar todo o empenhamento dado ao evento, que impulsionou o bom nome do vinho do Cartaxo e que tentou envolver mais as pessoas na cultura e na tradição da sua terra.
A ideia de fazer esta Festa surge da Câmara Municipal do Cartaxo, no seguimento do empenhamento da vereadora da Cultura de então, Maria José Campos, com a criação e desenvolvimento do Museu Rural e do Vinho do Cartaxo, onde se foi reunindo um espólio muito interessante em redor da vitivinicultura do concelho e arredores. Aliado a todo este interesse e urgência em recuperar as ferramentas/ alfaias vitivinícolas (algumas já tratadas como lixo), ultrapassadas pela modernização tecnológica nos meios de produção, havia a necessidade de recuperar o bom nome do vinho do Cartaxo. E a Festa do Vinho surgiu, assim, com o objetivo de melhorar a imagem do vinho do Cartaxo, dando-o a conhecer, através de dezenas de produtores e armazenistas, que foram impelidos a inovar e a apostar mais na qualidade dos seus produtos.
O vinho carrascão
Até aqui, o vinho do Cartaxo tinha má fama e o facto de ser vendido e distribuído a granel, nomeadamente para grande parte das tascas de Lisboa, não ajudava nada a melhorar a sua reputação – chamavam-lhe vinho carrascão. Mas também as imposições da União Europeia começavam a ser cada vez mais apertadas, prejudicando os vitivinicultores locais que não se modernizassem a nível dos meios de produção, mas também da sua comercialização. A Festa do Vinho do Cartaxo serviu, assim, para impulsionar uma requalificação do vinho da região e para a sua promoção. E para este efeito muito contribuiu Rogério Ribeiro, um homem viajado e avançado, proprietário de uma grande casa agrícola em Vila Chã de Ourique, que já engarrafava vinho desde os anos 60. “Ele viu que estávamos a ir ao encontro dele”, conta-nos Renato Campos, presidente da Câmara na época, e um dos mentores deste evento, recordando o entusiasmo deste homem, que influenciou vários viticultores a aderir à iniciativa, convicto dos benefícios que o evento traria à região.
Até nas conferências de imprensa, que a Câmara realizava para promover a Festa do Vinho, com dezenas de jornalistas de meios de comunicação social a nível local e nacional, Rogério Ribeiro participava, com empenho. E a sua presença era uma mais-valia, reconhece Renato Campos, pois era uma figura reconhecida no meio, pelos vinhos de qualidade que produzia. E, na verdade, foi essencial a aposta nestas conferências de imprensa, na Casa do Ribatejo, em Lisboa, onde se davam a provar algumas iguarias e vinho da terra, aos jornalistas, assim como se fazia uma apresentação bem estruturada da Festa e do que ela representava. Nestes primeiros anos, a divulgação da Festa do Vinho do Cartaxo foi feita a nível nacional, com destaque em jornais como “A Capital”, “Diário de Notícias”, o “Correio da Manhã”, entre muitos outros meios de comunicação, sem custos em publicidade.
Primeira festa do vinho
De acordo com os relatos de Renato Campos, havia na altura somente uma festa do vinho, em Palmela, que ele próprio foi conhecer, juntamente com a mulher e um grupo de pessoas, uma comissão, onde, entre outros entusiastas da causa, se incluía Carlos Arménio e o enólogo João Sardinha. Depararam-se com um desfile de carros alegóricos que representava o processo de produção do vinho. “Nós havíamos de fazer uma Festa do Vinho do Cartaxo para promover o nosso vinho”, dizia o então presidente da Câmara.
“Fizemos aquele recinto, humildemente, com os meios da Câmara; o teto feito em chapa e as paredes com tapumes de madeira”. Ainda segundo Renato Campos, a Argibetão ofereceu umas telhas, mas um dia antes percebeu-se que a estrutura de madeira não aguentava o peso e, em pouco mais de um dia, as telhas tiveram de ser substituídas por chapas de zinco. “Foi feito com a prata da casa.” Mas fez-se, contemplando a região demarcada do vinho do Cartaxo, que abrangia o concelho, mas também parte do concelho da Azambuja, nomeadamente Aveiras de Cima, com quem o Cartaxo partilha localidades, como os Casais Penedos. “Obrigámos os produtores a engarrafar vinho”, refere o ex-autarca, realçando o empenho nos rótulos; “até eu fiz rótulos de vinho”, lembra.
“Não tínhamos dinheiro”, assegura Renato Campos, referindo que, naquela altura, o orçamento anual da Câmara era de 400 mil contos. Mas “havia uma promoção bem feita, com uma certa classe, principalmente a partir do segundo ano, em que também se passou a convidar uma região vinícola para estar ali representada, assim como surgiram mais rótulos, já mais profissionais, havia outra qualidade”, recorda.
Listagem de expositores das primeiras edições da Festa do Vinho do Cartaxo, nos finais dos anos 80. Muitos destes nomes desaparecerem, foram fechando as portas, restando muito poucos no início do novo milénio. Entre produtores, armazenistas e outros promotores do vinho do Cartaxo, estavam presentes: Adega Cooperativa do Cartaxo, António Leandro de Matos Machado, Augusto Ferreira e Filhos, Enófilos do Cartaxo, Casa Agrícola Francisco Ribeiro, Francisco Bernardino Nogueira, A Garrafeira do Século, Joanicas, Maria Antonieta Lopes Aleixo, Mateus Reis Rosa, Norberto Patrício Monteiro, Produvin, Ricobar, Sociedade Agrícola Casal do Conde, Sociedade Agrícola do Rio do Pote, Vinhos Vilada, Vinical, Viticartaxo. O espaço exterior do recinto da festa acolhia vários expositores de máquinas agrícolas.
Elogio ao vinho
A Festa do Vinho começou a ser um importante ponto de encontro entre os produtores e armazenistas de vinho do Cartaxo, onde eram premiados os melhores vinhos. Aqui o vinho não era só provado, era exaltado: cada expositor ali presente era cuidadosamente enfeitado, criando diferentes ambientes, todos eles dedicados à vitivinicultura. Também havia prémios para os mais bem decorados, assim como para o melhor slogan que cada um deles tivesse estampado. A título de curiosidade, no segundo ano da Festa, venceu a Vilada – Sociedade de Vinhos de Valada, com o slogan “Beba vinho com moderação, mas a um ‘Cartaxo’ não diga não”. Não menos engraçado, conseguindo o terceiro lugar, ficou a frase da casa Augusto Ferreira e Filhos “Estás ‘em baixo’? Bebe Cartaxo”. Outra frase interessante, proferida, em jeito de conselho, pelo então presidente da Câmara, tornou-se no lema de todos, dentro do certame: “Beber um copo de vinho é um ato cultural. Assim sendo, beba com moderação, em excesso pode fazer-lhe mal”.
Tal como nos dias de hoje, havia tasquinhas a representar a gastronomia tradicional de cada freguesia do concelho, oito ao todo, mais a da Região de Turismo do Ribatejo, também elas julgadas e as melhores premiadas. Nos primeiros anos da Festa, as tasquinhas estavam confinadas a um espaço bastante mais reduzido do que o atual, nem sequer havia mesas, ainda assim, na segunda edição, em cinco dias, venderam mais de 3500 litros de vinho. Pudera, o vinho era diariamente provado pela comissão de provas, composta por alguns enólogos do Cartaxo, que exigia vinho de qualidade, caso contrário era retirado da venda, como chegou a acontecer.
O espaço ocupado, atualmente, pelas tasquinhas era, no início, destinado aos produtores e armazenistas, cerca de 20, ao todo, que ali davam a conhecer os seus vinhos. No centro do recinto estava o palco, pisado, nos primeiros anos, por Paco Bandeira, Vicente da Câmara, UHF, entre outros, sem esquecer os ranchos folclóricos do concelho, convidados “pela alegria e o colorido” das suas atuações.
Evento social e cultural
A Festa do Vinho foi uma ‘lufada de ar fresco’ para o Cartaxo. Na época, a iniciativa foi tão apreciada pela população, que nem o chão coberto de brita era entrave às senhoras que ali gostavam de ir, para conviver e provar os vinhos licorosos, entre outras que ali estavam, elas próprias, a divulgar as suas colheitas. Maria José que, com o marido João Manuel Mesquita Lopes, representavam “A garrafeira do século”, posto de venda dos vinhos dos expositores, recorda o empenho e a convivência que existia entre todos, assim como as caixas e caixas de vinhos, aguardentes e licorosos que ali vendeu. “Foram épocas muito boas, muito trabalhosas, mas muito gratificantes”.
As maiores recordações que as pessoas guardam, das primeiras edições da Festa, têm precisamente a ver com a convivência e a confraternização que ali se gerava. Juntavam-se grupos de amigos e conhecidos, muitos visitantes vindos de fora da terra, e havia um grande convívio em volta do vinho. Os responsáveis pelas casas, que ali representavam o vinho do Cartaxo, aproveitavam para se conhecer melhor e confraternizar, pois aquele era um espaço que os aproximava, que os unificava. Graciete Machado, dos vinhos Machado, lembra-se bem deste ambiente de confraternização entre os responsáveis dos diferentes expositores, apesar das rivalidades que existiam entre eles, fora da Festa. “Lá, naquela altura, todos trocavam vinhos e provavam os vinhos dos outros, principalmente nos primeiros anos, que era um ambiente mais familiar”.
E sendo este um evento de âmbito cultural, a par do que se passava no recinto da Festa, realizavam-se outras em torno da cultura da vinha e do vinho. Decorriam colóquios de interesse vitivinícola e exposições subordinadas ao tema da vinha e do vinho, convidando-se artistas plásticos de renome a representar a sua visão sobre o tema, depois de lhes ser proporcionada uma visita guiada ao concelho, com paragens em locais de interesse. Realizava-se ainda um concurso, dirigido aos alunos do primeiro ciclo do Cartaxo, em que eram desafiados a desenvolver textos, fazer desenhos ou colagens, entre outras formas artísticas, sobre “A vinha e o vinho e as tradições do nosso concelho”. Era, sem dúvida, uma tentativa de envolver os mais jovens na cultura, tradições e costumes da sua terra.
Na nota de imprensa enviada aos meios de comunicação social, a nível nacional, o gabinete de comunicação da Câmara do Cartaxo elogiava a segunda edição da Festa do Vinho do Cartaxo, destacando o seu “grande êxito”, com a passagem de mais de 40 mil pessoas, durante os cinco dias em que decorreu o certame, o dobro dos visitantes do primeiro ano. Ainda segundo o comunicado, as transações conseguidas pelos onze engarrafadores do concelho renderam cerca de 30 mil contos, tendo as tasquinhas das oito freguesias e da região de Turismo do Ribatejo movimentado, nestes dias, cerca de 2500 contos. O documento dá ainda conta das declarações públicas do presidente da Câmara e da vereadora da Cultura, da época, Renato Campos e Maria José Campos, respetivamente, que previam “uma terceira edição ainda com maior êxito”. A título de curiosidade, segundo esta nota de imprensa, a área do concelho ocupada com vinha era, em finais dos anos 80, de 6783 hectares, num total de 15853 hectares existentes.
Nos inícios dos anos 90, chegou-se à conclusão que o recinto a qualquer altura poderia cair, com o passar dos invernos, aquelas tábuas de madeira haviam de apodrecer. Era chegada a altura de fazer obras, para poder dar seguimento ao certame, até com melhores condições. Assim aconteceu, depois de um ano de interregno, que serviu para fazer obras e construir o Pavilhão de Exposições, mas aqueles primeiros anos deixam saudades.
Rota do Vinho do Cartaxo
A par das iniciativas de promoção da importância da cultura da vinha e do vinho no concelho, como o Museu rural e do Vinho e a Festa do Vinho, fez-se também, pela mesma altura, a Rota do Vinho do Cartaxo, a primeira rota de vinhos, trazendo gente de fora a percorrer a rota do campo e do bairro, e a visitar locais como a Fonte Bela, o Museu Rural e do Vinho, as adegas da casa agrícola de Rogério Ribeiro, os Chavões, entre outros locais, como Pontével para ver a igreja, onde se colocavam expositores com artesanato da terra e caspiadas. “Chegavam a vir, semanalmente, duas carrinhas de 18 lugares, entretanto, a Região de Turismo do Ribatejo apropriou-se desta rota, que entretanto parece que não chegou a fazer”, refere Renato Campos.
Fotos: Arquivo Câmara Municipal do Cartaxo, ©A. Cunha