A guerra, a arte e “Dada”

Por Celeste Ribeiro-de-Sousa

Olá! “Bom dia, boa tarde ou boa noite, conforme a hora e o local onde nos estiverem a escutar”. Era assim que Artur Agostinho iniciava seus relatos de jogos de futebol. Quem ainda se lembra? Mas, introduções, apresentações e memórias à parte, estou aqui para falar de outra coisa: da guerra, da arte e do nome “Dada”.

Não há como não associar o título da Revista Dada ao movimento artístico também chamado “Dada”. Foi a primeira coisa que me ocorreu, quando tive conhecimento da existência da Revista. Só posteriormente vim a saber que a Revista Dada assim se intitulava, porque era oferecida sem custos, numa iniciativa jornalística absolutamente digna de elogios, exemplar, porque, desta forma, reúne o povo do concelho em torno de um eixo identitário.

Portanto, entre os significados dos dois títulos “Dada” não há relação alguma. Ainda assim, talvez seja pertinente explorar o outro significado de “Dada”, vocábulo que designa o movimento artístico “Dada” (pronunciado dádá), deflagrado por causa da Primeira Grande Guerra (1914-18). Ora, como hoje assistimos, com infinita perplexidade, a uma nova guerra na Europa – a chamada Guerra da Ucrânia – talvez as mensagens do mencionado movimento artístico possam encontrar eco nos dias atuais. Vejamos!

“Dada” é a abreviatura de “Dadaísmo”, uma vertente das chamadas vanguardas europeias do século XX (Expressionismo, Fauvismo, Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo), movimentos artísticos também conhecidos pelo nome generalista de Modernismo. O Dadaísmo teve seu início na cidade de Zurique, em 1916, portanto, em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918), num cabaret chamado “Voltaire”, fundado por Jean Arp, Marcel Janco, Richard Huelsenbeck, Sophie Tauber-Arp e Tristan Tzara. Atravessava-se uma época de grandes descobertas científicas, inovações tecnológicas, proporcionadas pela Revolução Industrial, as quais, em conjunto, criaram condições para a explosão da ferocidade humana durante o conflito. Uma ferocidade que chocou em particular os artistas. Sua arte passou, assim, a ter como objetivo precípuo chamar a atenção das pessoas para o descalabro humano em curso. E como lograram fazer isso? Criando obras com enorme potencialidade de chocar sensibilidades anestesiadas pela rotina, alheias aos sofrimentos nos campos de batalha, lá longe. Uma estratégia que funcionaria hoje diante da guerra na Ucrânia? Leia-se, por exemplo, o artigo de Boaventura de Sousa Santos “Adeus à Europa?”, on line na revista “A terra é redonda”.

Em 1917, o francês Marcel Duchamp apresentou ao público provavelmente a obra mais impactante desse movimento artístico “Dada/Dadaísmo”. Tratava-se de um mictório masculino, designado, porém, como fonte e como arte – uma peça assinada. Tal ousadia ainda hoje é um “soco no estômago”! A fonte sempre vista pela tradição com uma aura divina, ligada ao paraíso, à manutenção da vida, de repente, aparece representada por um recipiente de excrementos, quer dizer, de coisas mortas, fedorentas, em decomposição – numa alusão à guerra -, embora daí também possam surgir imagens eróticas. Todavia, a percepção dos artistas era de que qualquer coisa podia ser transformada em arte em tempos tão caóticos e desumanos; o que importava era protestar a qualquer preço, era ser irreverente, desafiar a lógica, atormentar o automatismo das existências. E essa e outras obras passaram a ser conhecidas como “ready-made objects”, ou seja, peças artísticas assentadas sobre objetos já existentes, triviais ou não, que eram modificados e acabavam, assim, com o horizonte de significado dilatado em graus vários, o que justamente os tornava/torna arte.

O grupo dadaísta abarcava, além dos fundadores, escritores e artistas plásticos, entre eles, Hans Arp (1886-1966), Hugo Ball (1886-1927), Kurt Schwitters (1887-1948). Tristan Tzara (1896-1963) explicou, por exemplo, no “Manifeste Dada” de 1918, que “l’œuvre dart ne doit pas être la beauté en elle-même, car elle est morte” (a obra de arte não deve ser a beleza em si mesma, porque ela está morta).

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Entre muitos outros exemplos, logo após o fim da Guerra, precisamente em 1919, o mesmo Marcel Duchamp exporia também sua “Mona Lisa”, de bigodes e cavanhaque, um quadro conhecido pela sigla L.H.O.O.Q. – um deboche do famoso e enigmático sorriso feminino da célebre “Gioconda”, de Leonardo da Vinci (1452-1519), hoje exposta no Louvre.

Em Portugal, curiosamente, o movimento “Dada” não encontrou grande repercussão. Alguns poucos artistas configuraram/configuram em suas obras elementos, que até podem estabelecer uma ponte com o Dadaísmo. E, entre esses poucos artistas, estão nomes como Mário Cesariny (1923-2006), Eurico Gonçalves (*1932), Cruzeiro Seixas (*1920), Joana Vasconcelos (*1971).

Em 2016 (12/03 – 09/04), por exemplo, foram comemorados em Vila Nova de Cerveira os cem anos do “Dadaísmo”, com uma exposição dedicada ao tema na “Fundação da Bienal de Arte de Cerveira – FBAC”.

Termino este breve apontamento com a pergunta do começo: A mensagem “Dada” não encontraria eco ainda hoje numa Europa toda atentamente voltada para a Guerra da Ucrânia?

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