A incompetência militante

Opinião de João Fróis

O grande Nelson Mandela dizia: “Os tolos multiplicam-se quando os sábios estão em silêncio”. E a realidade vai-lhe dando razão a cada dia que passa. O recente episódio da ignorância fiscal de José Sócrates é disto exemplo cabal e alicerça o que há muito defendo, a incompetência na política é uma doença perigosa e letal.

Debrucemo-nos sobre a questão particular. Escutas recentes trouxeram a lume o desconhecimento fiscal sobre os procedimentos de quem passa recibos verdes. Percebe-se com espanto que o ex-primeiro ministro não sabia que tinha de pagar o IVA à cabeça e depois ser tributado em sede de IRS. Coisas que qualquer um dos milhares de comuns mortais que têm de conviver com estas práticas diárias e mensais bem conhecem mas que pelos vistos nunca fizeram parte dos conhecimentos de Sócrates. Espanto? Incredulidade? Sim, à partida são sentimentos naturais que nos assaltam a consciência mas se bem virmos o panorama político à nossa volta, talvez encontremos outras tantas razões para não nos espantarmos por aí além. E esta situação leva-me a regressar a um tema que há muito defendo e me preocupa, a competência de quem nos representa.

O nosso sistema eleitoral assenta numa lógica partidária e a Constituição prevê a sua legitimidade enquanto instituições potencialmente candidatas a elegerem representantes para os órgãos de soberania. Mas como se formam os partidos e que membros são estes que os compõem? Não existem certificações de competência para a atividade partidária e muito menos uma qualquer instituição que fiscalize ou legitime a assunção de cargos nessa estruturas e daí a potencial candidatura a lugares públicos e governativos. Fica tudo entregue a uma ascensão na militância e na participação ativa nas atividades do partido, mostrando mais do que competência, as habilidades certas na gestão dos interesses comuns e no apoio granjeado junto das chamadas bases de militantes, espalhadas pelo país real e participadas por gente bem conhecedora das realidades locais onde vivem.

E a verdade é que encontramos aqui, nestas sedes, pessoas bem intencionadas e cheias de bons propósitos ao serviço da comunidade, no melhor espírito de serviço público, afinal a génese essencial que deveria sempre presidir a qualquer representação de cargo político. No entanto, a realidade afasta-nos desta quase inocência pueril em que a fé ainda assenta mas que os factos desmentem. Notícias de corrupção ativa e passiva no exercício de cargo público enchem os escaparates dos jornais diários, passando a ser usuais e chegando ao cumulo que Oeiras tão bem ilustra, ao eleger Isaltino para novo mandato autárquico após ter sido condenado e ter cumprido pena precisamente por ilícitos no exercício camarário anterior. Posto isto, a citação sábia de Mandela tem aqui expressão máxima e o próprio espantar-se-ia com tão cabal demonstração.

É comum ouvir-se que a sabedoria está no povo mas a dúvida instala-se quando episódios como este sucedem. A lógica partidária pressupõe a legitimação através de eleições e do voto popular que, no seu conjunto, decidirão quem, entre os que se candidataram, merece ser o digno representante dos seus interesses coletivos. Ganha um partido e é dentro deste que é escolhido o primeiro-ministro, o condutor que irá por sua vez escolher a equipa que o acompanhará nos quatro anos de mandato executivo. Falamos de escolhas, tão subjetivas quanto a natureza humana permite e com toda a margem de erro inerente a essa mesma condição. E todos esses escolhidos irão ter cargos públicos e muito poder nas mãos, sendo bem pagos para tal função e da qual poderão ser demitidos ou demitir-se sem qualquer mácula ou dano, civil ou criminal, que julgue a bondade ou legalidade desse mesmo exercício. Convenhamos que, se isto não é o eden dourado andará lá bem perto.

Atentemos. Um qualquer cidadão, sem necessidade de apresentar particulares credenciais catedráticas ou profissionais, que não tenha cadastro criminal, mas pertença a um partido onde desenvolva atividade regular, pode, ao fim de algum tempo candidatar-se a um cargo público e ter nas suas mãos um poder que de outro modo nunca teria. E para melhorar ainda a “fábula”, pode cometer alguns erros e mesmo ilícitos no exercício do cargo político e não ter de responder civil ou criminalmente pelos danos que potencialmente causou, sendo apenas demitido politicamente, o que significa tão só voltar ao mundo privado onde o espera um lugar “dourado” numa das empresas bem relacionadas com o Estado. Já viu este filme? Ou preferiu manter-se em silêncio? A ver os tolos multiplicarem-se? Não nos esqueçamos que os sábios falam quando têm algo a dizer, já os tolos falam porque têm de dizer algo. E diz-nos também a sabedoria ancestral que “quem cala consente”. E que “cada um tem aquilo que merece”. Sim é certo que se os sábios se refugiarem no silêncio complacente, não merecem mais do que aquilo que permitiram acontecer. Para mais, se na premência de ter de decidir optares pelo silêncio, garantidamente alguém irá decidir por ti e não será necessariamente nem o melhor, nem o mais capaz para tomar as decisões que urgem ser tomadas. E se todos aqueles que se pautam pela verdade, pela dignidade e pelo bem coletivo, optarem por não votar, por lutar pelos princípios maiores da construção social, se calarem nos atentados à ética e moral, então a sabedoria que ostentariam orgulhosamente será cobardia, dando força aos que sem escrúpulos tomam o poder nas suas mãos e arrogantemente se esquecem da nobreza da missão a que se deveriam dedicar, olhando mais aos seus interesses e aos dos que lhes permitiram ascender onde agora brilham.

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Por tudo isto, defendo algumas ideias fortes e estruturantes do Estado enquanto pessoa de bem. Eleger os melhores de entre a sociedade civil e pagar-lhes como executivos de topo para tomarem as melhores decisões mas com duas condições: se submeterem a pactos de regime para dez ou vinte anos, saídos de um conselho de Estado com poderes vinculativos e aceitarem ser julgados civil e criminalmente pelos ilícitos que vierem a cometer no exercício das suas funções. Deste modo ir-se-iam alcançar vários desideratos. Ter as decisões estruturais e fundamentais protegidas das alternâncias políticas, sendo mantidas ao abrigo da vinculação superior do conselho de Estado e o exercício do poder seria mantido dentro das boas práticas, longe do nepotismo e corrupção, prontamente julgadas por um sistema judicial renovado e célere.
Posto isto, cabe a cada um de nós dar voz à sabedoria civilizacional que urge ser defendida a todo o custo, sob pena de soçobrar às mãos do populismo aberrante que grassa por esse mundo fora, na (i)lógica dos nacionalismos, das raças e credos transformados em armas de arremesso e dos interesses particulares, de grupos ou lobbies como “valores” maiores da sociedade, fomentando a desigualdade, a injustiça e o sectarismo, protegendo alguns e deixando a maioria entregue a uma lógica de sobrevivência pura e dura.

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