A manta de retalhos

 

“Invictamente”, por João Fróis

joao froisAs chamas brilham nos ecrãs das televisões, devastando hectares de floresta, para logo cederem a antena às praias sobrelotadas. Uma notícia que tristemente se repete, ano após ano, e uma não notícia que, invariavelmente, acontece na época estival. Está meio país a arder, sufocado em chamas e fumo denso e outro tanto a banhos, estendendo os corpos nas praias atulhadas. É neste paradoxo que vive Portugal no verão.

No meio de tudo isto existe um país que não vai de férias e que permanece em casa e nas suas rotinas. E no rescaldo dos incêndios sabe-se o que todos desconfiam, a mão humana é a grande culpada deste flagelo tremendo. E o perfil dos incendiários vai sendo traçado a régua e esquadro, entre as perturbações mentais, o total desamparo social, o isolamento, as querelas familiares e de vizinhança, a negligência grosseira… a sensação de deja vu é total, podendo as televisões pôr no ar edições de anos anteriores que ninguém irá notar. Mais do mesmo. Cumpre entender porquê.

Portugal é um país que investiu milhões em autoestradas mas que não fez uma reforma administrativa de fundo. Temos assim redes viárias de topo que passam sobre propriedades que se mantêm inalteradas há décadas, com todos os seus problemas ancestrais. Do Alentejo para norte a divisão da propriedade rústica é anacrónica, irregular e pior gerida. Muitos dos proprietários são herdeiros desfasados com as anteriores utilizações em que a terra era o sustento, procurando agora o lucro fácil com eucaliptos em terrenos que não cuidam nem limpam. Pelo meio existem milhares de casas espalhadas entre floresta e mato, muitas abandonadas, outras isoladas em pequenos núcleos e outras fechadas até que as visitas de verão lhes devolvam a vida.

Para termos uma ideia mais realista do nosso território basta sobrevoá-lo e vindo de Espanha. O país vizinho é um país de cidades. Fez, em tempos, uma lenta reforma administrativa e populacional, dando prioridade aos grandes centros urbanos onde reuniu o melhor das condições de vida e organizou os campos agrícolas em cooperativas eficientes onde todos partilham máquinas e meios. Ganhou em planeamento, em gestão das redes de saneamento, água e eletricidade, aproveitou recursos e centrou necessidades. Ao entrarmos em território nacional observemos o casario espalhado pelos montes e vales, de forma anárquica, e uma faixa litoral mais pressionada e urbanizada mas igualmente desordenada. Pelo meio, o País mantém milhares de quilómetros de cabos elétricos para chegar a todos os inúmeros povoados, redes de saneamento que continuam a tentar cobrir os acessos principais e estradas, e sinalizações que contornam as pequenas propriedades que salpicam o centro norte português. As casas convivem com aglomerados de árvores numa (i)lógica de aproveitamento máximo do espaço disponível. Árvores que são na sua maioria eucaliptos ou pinheiros, espalhados sem critério. E para tanto basta percorrer alguns quilómetros no distrito do Porto e constatar a complexidade dos aglomerados populacionais, entretecidos numa malha confusa e disforme que nos lembra as velhas mantas de retalhos. É neste caos urbanístico que vivem centenas de milhares de pessoas e que à sua volta têm pequenos montes com mata e floresta, fábricas e indústrias paredes meias, condomínios fechados, aldeias e lugares, casas isoladas, terrenos agrícolas e casas, imensas casas a perder de vista. Suba-se a um dos muitos montes do Douro e Minho e constate-se a olho nu esta realidade. Que é assim no distrito de Aveiro e também no de Viseu, Coimbra, Guarda, Leiria e parte norte do de Santarém. Trás-os-Montes já tem uma orografia e urbanização algo díspar e só no Alentejo nos aproximamos do modelo espanhol e europeu, com concentração urbana e alargamento do tamanho das propriedades agrícolas.

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Ora muito há a trabalhar para prevenir os incêndios e as imensas perdas que os mesmos provocam. Mas isso passa por uma verdadeira reforma administrativa e que no essencial terá de: atualizar todos os cadastros de proprietários e propriedades rústicas e urbanas; efectuar censos sobre a habitacionalidade das pequenas povoações; aplicar legislação que obrigue à limpeza e ordenamento das florestas, prevendo a expropriação no limite da negligência, sendo o Estado o primeiro a dar o exemplo nos terrenos sob a sua alçada; alocação de terrenos específicos para produção industrial de pasta de papel e reordenamento com espécies autóctones portuguesas como são todas as da família quercus, carvalhos, azinheiras e sobreiros; criação de corredores corta-fogo em todas as zonas de difícil acesso, assim como pontos de abastecimento de água. E porque não mobilizar milhares de desempregados para, a troco de um pagamento justo, limparem as matas e florestas nacionais?

Geravam-se milhares de toneladas de massa florestal que são um ótimo combustível orgânico e sempre renovável. Inventariavam-se cartas florestais, espécies, caminhos, povoados e todos teriam a ganhar com o melhor e mais profundo conhecimento do território. Esta deveria ser uma das prioridades dos municípios portugueses, criando riqueza que está disponível, dando trabalho às populações e gerando energia limpa. Para tal existe hoje tecnologia que permite avaliar, detetar e conhecer grande parte das atividades humanas e do seu impacto na exploração e manutenção agrícola e florestal. Este tem de ser um desígnio nacional, uma revolução lenta mas imparável que em 20 anos transforme positivamente o nosso país e nos afaste da calamidade dos incêndios.

Afinal, perceber onde está e quem possa ser um potencial incendiário é tão difícil como detetar um terrorista. No primeiro caso, se organizarmos melhor o território e os seus recursos podemos todos ganhar esta batalha, ao invés do segundo que ao ser de pessoas contra pessoas torna tudo muito mais imprevisível, complexo e mais dificilmente evitável.

Mobilizemo-nos.


 

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