A noite em que o Cartaxo viu passar a revolução

A liberdade passou por aqui. O Cartaxo foi testemunha involuntária de um momento alto da nossa história. A revolução dos cravos cruzou as ruas da nossa cidade e há quem recorde o momento

©Luiz Carvalho

Reportagem publicada na edição impressa da revista DADA (nº49), em abril de 2014.


Às 3h30 da madrugada de 25 de Abril uma coluna militar começa a deslocar-se pela Porta de Armas da Escola Prática de Cavalaria de Santarém. Dez viaturas blindadas, doze de transporte, duas ambulâncias, um jipe e uma viatura civil transportam 160 homens, armados e municiados com duas rações de combate, comandados pelo capitão Salgueiro Maia. Lentamente, a longa fila de veículos entra na Estrada Nacional 3, em direção a Lisboa. A pouco mais de 30 quilómetros dali, na Fábrica da Ford, na Azambuja, Armando Maltez, hoje com 82 anos, preparava-se para deixar o seu turno na linha de montagem. Vai ser, meia hora depois, testemunha da viagem dos militares. Ainda não eram 4h15 Adelino Maltez está um pouco à frente da Cruz do Campo quando se cruza com a imponente coluna militar. Tem de abrandar. Percebeu de imediato “que alguma coisa séria se ia passar”. “Tinha havido o golpe das Caldas em Março, por isso a primeira ideia que tive foi logo de que ia haver outro golpe militar”, recorda. Minutos depois, ao chegar a casa, no Cartaxo, confirmou na rádio as suas suspeitas. Às 4h26 Joaquim Furtado lia aos microfones do RCP (Rádio Clube Português) o primeiro comunicado do MFA.

Uma hora antes, em Vila Chã de Ourique, o chão tremeu e um ruído fora do comum fez acordar um miúdo de 11 anos. “Acordei eu, os meus pais e os meus vizinhos” recorda Ramiro Coelho, hoje com 50 anos, agente principal da PSP, no Cartaxo. “Lembro-me de termos vindo todos para a rua, pelo menos quem morava em casas ao longo da Nacional 3, tudo numa grande agitação. Mas acho que ninguém tinha ideia do que se estava a passar. Para mim foi um acontecimento”.

Cartaxo, 27 de abril de 1974, Rua dos Combatentes do Ultramar, onde o Movimento das Forças Armadas colocou alguns soldados com o objetivo de desmantelarem a sede da Legião Portuguesa, que funcionava no edifício conhecido por “Ferro de Engomar”. António Bento Luiz, mais conhecido por António Miguel, oferece um copo de vinho a dois soldados do MFA. A fotografia é da autoria de António Cunha.

Também Miguel Leal, 43 anos, investigador no IHA (Instituto de História da Arte) da FCSH da Universidade Nova de Lisboa, recorda a trepidação dos edifícios à passagem da coluna de Salgueiro Maia. “Foi um pequeno sismo” conta-nos “eu era muito pequenino mas tenho a noção de ter acordado e de haver muito barulho”. “No dia a seguir os cafés encheram. As pessoas confraternizavam. Havia alguns receios, sobretudo em pessoas mais de direita, mas o ambiente era de festa” diz-nos. O historiador refere que a passagem para a democracia se fez, no Cartaxo, sem excessos. “O Cartaxo era uma terra de comerciantes e lavradores. Havia desigualdade mas não era tão acentuada como, por exemplo, no Alentejo, daí não ter havido aqui reforma agrária” explica. “Por outro lado, na sua maioria as pessoas abastadas tinham a mesma origem social da restante população” o que para o historiador justifica a forma pacífica como a revolução foi aceite na região.

Renato Campos, 73 anos, que viria a ser, dois anos depois, o primeiro presidente da Câmara do Cartaxo a ser eleito democraticamente, recorda a madrugada de 25 de Abril. “A meio da noite recebi um telefonema de um amigo, para ligar o Rádio Clube, pois qualquer coisa estava a acontecer. Liguei e ouvi marchas militares. Mau, pensei logo num golpe da direita. Mais tarde, ouvi o comunicado do MFA e músicas do Zeca. Alto lá, que isso já me agradava. A partir daí a ansiedade aumentou. A dúvida era se o movimento sairia vitorioso” conta-nos. Uma certeza é deixada pelo economista: no Cartaxo não houve tentativas de travar os acontecimentos: “curiosa e estranhamente, parecia que nesse dia ninguém apoiava o regime. ‘Eram todos democratas’, ou talvez… tinham já receio de o não serem” ironiza.

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O economista dá-nos conta da emoção que se vivia. “Havia um brilhozinho nos olhos dos anti fascistas de sempre, com muitos abraços e lágrimas de alegria. Era quase impossível usarmos o telefone pelo que as notícias corriam de boca a boca! Havia um ‘broá’ coletivo”. E acrescenta: “Claro, que à medida que as pessoas iam tendo consciência que havia uma revolução, notava-se uma indisfarçável preocupação. As escolas deixaram de funcionar, algum comércio fechou portas e muita gente achou por bem refugiar-se em casa, coladas à RTP ou às rádios, já que a prioridade era saber notícias. Mas, no essencial, a vida comunitária não deixou de funcionar. No final do dia, já não tinha dúvidas de que a liberdade e a democracia tinham sido restauradas em Portugal, praticamente, sem um tiro”.

Apesar da forma pacífica como a revolução passou pelo Cartaxo, não deixou de haver alguns momentos de tensão. Armando Maltez recorda a ocupação do espaço ocupado pela Legião. “Lembro-me que era ali para os lados do Ferro de Engomar. Ocuparam a sede e retiraram de lá armas. Nos dias seguintes alguns indivíduos que se sabia serem da PIDE ou da Legião ainda ouviram alguns insultos na rua” recorda. Renato Campos refere igualmente algumas ações de vigilância à sede da Legião e a conhecidos informadores da PIDE, mas, registe-se, nenhuma agressão”.

Ana Benavente e a filha, Rosa. No regresso. Lisboa, 1974. Foto de Christine Josso

O impacto da ações do MFA foi sentido de forma diferente por cartaxeiros que se encontravam exilados. Era o caso de Ana Benavente, socióloga, que na época vivia em Genebra e para quem a revolução representou “a liberdade, o fim da ditadura, mas também a vitória da luta de todos e todas os que tinham a sua vida pendente e dependente da democracia e do fim das guerras coloniais. Foi a possibilidade de voltar a viver em Portugal depois de, em 1965, ter partido” afirma. Ana Benavente recorda que “no dia 25 de Abril o jornal “La Tribune de Genève”, um vespertino, saiu com uma grande manchete: ‘Des Chars Marchent Sur Lisbonne’, ou seja ‘carros de combate avançam sobre Lisboa’. Para os exilados portugueses as primeiras horas foram de dúvida sobre o rumo dos acontecimentos. As notícias eram escassas. “Tinha então um rádio que captava todas as ondas, para ouvir a Rádio Voz da Liberdade (Argel) e essa foi uma das fontes que alimentou esse dia e os que se seguiram” recorda. “Falei com a minha mãe ao telefone, no Cartaxo, nessa semana” lembra Ana Benavente, “contou-me duas coisas: que tinham dado uma volta de carro no fim-de-semana depois do 25 de Abril e que toda a gente falava, sorria e acenava, fazendo o sinal da vitória. No 1º de Maio parece que a banda de música percorreu as ruas do Cartaxo e parou à porta de algumas pessoas, democratas, e com orgulho do meu pai, parou à nossa porta”.

Para a pequena história fica a informação, não confirmada, mas referida por várias fontes, que a viatura civil que encabeçava a coluna militar comandada pelo Capitão Salgueiro Maia terá parado no Cartaxo e, na cabina telefónica existente junto aos Correios terá sido feita uma ligação para o posto de comando do MFA, na Pontinha, a confirmar que a Escola Prática de Cavalaria se encontrava a caminho do objetivo.

A viagem até Lisboa, que fez estremecer as ruas do Cartaxo, terminou perto das 5h30 dessa madrugada. Salgueiro Maia contactou um misterioso posto de comando com a seguinte mensagem: “Informo que ocupámos Toledo (Terreiro do Paço), Bruxelas (Banco de Portugal) e Viena (Rádio Marconi). Diga se escuta!”. Do outro lado respondeu uma voz metalizada: “Afirmativo. Papa Charlie no controlo”.


Texto: Luís Rosa-Mendes. Foto em destaque: Luiz Carvalho.

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