A Inquisição ficou na História como uma das páginas mais negras da civilização ocidental, tendo afetado os alicerces da construção social da Europa e moldado muito do que ainda hoje somos enquanto sociedade.
No dealbar dos descobrimentos e da abertura de novos mundos ao mundo de então, com a circulação de bens e ideias e a aproximação de povos e culturas, a inquisição veio de novo trazer o fechamento medieval e uma perseguição, mais do que religiosa, ao que era diferente e ia contra a trindade do poder e os seus absolutismos. Nobreza sedenta de privilégios, um clero a querer recuperar o mando das letras e a influência sobre o conhecimento e reis que chamaram a si o poder absoluto, bem assente nesta teia de influências e partilha da riqueza que uma vez mais espoliava o povo.
Portugal conheceu o retrocesso social quando as perseguições aos cristãos novos, muçulmanos e judeus integrados na ordem cristã, trouxeram o que de pior se conhece na construção de uma sociedade, com a intriga, a denúncia gratuita e o escárnio e maldizer a tomarem as rédeas e levarem milhares de inocentes à fogueira nos horrendos autos de fé que expurgavam os “infiéis” que o eram por apenas serem diferentes da ordem vigente e serem alvos fáceis da demonização do poder. Qualquer semelhança com os dias de hoje não é pura coincidência.
Atentemos.
Os recentes processos mediáticos de investigações do ministério público trazem de volta a velha inquisição e os seus piores males, mascarados sob togas bafientas. E se dúvidas houvesse basta abrir os olhos e assistir a mais um violento ataque ao segredo de justiça, trazendo à praça pública nomes, acontecimentos e factos que deveriam estar protegidos pela lei e serem impedidos de divulgação pública. Se antes conhecemos páginas negras nos processos da Casa Pia e os igualmente mediáticos contra José Sócrates, com a divulgação vergonhosa de informação que permitiu o julgamento na praça pública dos visados nas investigações, assistimos agora a algo inédito e que cava ainda mais fundo na degradação dos pilares do estado de Direito, com o ataque despudorado de magistrados contra pares, usando a comunicação social e as suas, evidentes, perversões, para obter dividendos que, para já, ainda não se descortinam na sua real dimensão.
O estado de Direito é uma construção essencial das sociedades modernas e que a Europa soube construir lenta mas inexoravelmente, ao longo de séculos e na ressaca dolorosa dos muitos conflitos que a foram ferindo e ameaçando de morte, e soube trazer até aos dias de hoje. A defesa de valores como a liberdade e a igualdade entre os cidadãos são pilares determinantes de tudo o que somos enquanto sociedade e que permitem, entre tantas outras coisas maiores que eu possa estar a escrever sem receios e a partilhar a minha opinião sobre o estado da nação. Violar grosseiramente princípios essenciais como o in dúbio pro reu, onde se preserva a assunção da inocência do arguido até prova em contrário determinada em sentença, é ferir de morte o mesmo estado de Direito que o ministério Público deve e diz proteger. E se este tem o mérito de lançar investigações transversais a toda a sociedade, não se apeando de trazer à liça políticos e magistrados, mancha a negro as suas mais nobres intenções ao permitir, dentro de portas, que o segredo de justiça seja vilipendiado em diversas frentes e seja arma de arremesso a uma comunicação social sem escrúpulos e sedenta de sangue e escândalos que lhe garanta audiências. O circo romano coraria de vergonha face ao despudor com que hoje se “matam” nomes na praça pública e se “julgam” o caráter de cidadãos como nós, nas fogueiras do mesmo escárnio e maldizer que séculos antes queimaram milhares nas praças europeias.
A diabolização conhece faces múltiplas que nos enganam os sentidos e atacam o discernimento e razão. O vergonhoso episódio que quis criminalizar uma ida do ministro das finanças a um jogo de futebol é provavelmente, uma das páginas mais negras da investigação do ministério público. Parece de somenos à primeira vista mas tem um alcance perigoso e assaz preocupante pois demonstrou algo que nos deveria fazer refletir a todos, ao tornar evidente que os motivos que lançam uma investigação pouco ou nada têm a ver com o Direito e revelam um grau zero no uso da probidade e bom senso, que deveriam sempre nortear as ações públicas de um órgão fulcral na justiça e sua administração. Ao vermos que um conhecido grupo de comunicação social, famoso por assentar em escândalos, lança a notícia sobre a investigação que vai ser feita sobre o ministro das finanças e que no dia seguinte se prova vir a acontecer, deveria obrigar a, aqui sim, uma investigação até às últimas consequências sobre quem e com que fins anda a quebrar, criminosamente, o segredo de justiça, lançando o caos e o bom nome dos visados para a mais negra e nauseabunda lama social.
Joana Marques Vidal já veio afirmar que muito há a refletir sobre o que se tem passado nestes inquéritos no que à violação do segredo de justiça concerne. Faz, e bem, o que a Procuradoria-Geral da República deveria obrigar, de antemão, a todos os muitos intervenientes nas investigações e que, segundo a mesma, superaram os mil funcionários. Não pode ser o número elevado de participantes a negar a defesa desse princípio essencial e a permitir a sua constante e degradante violação, alimentando as muitas fogueiras que a sociedade de hoje tem em ininterrupta ebulição e que não olha a quem e a todos ameaça na sua dignidade.
A justiça por alguma razão se diz ser cega, ao não diferenciar as penas em medida dos arguidos e aplicando, imparcial e justamente, os ditames da lei e do Direito, na boa defesa dos princípios iniludíveis que a constituição consagra e a todos defende. Perceber que o órgão responsável pelas investigações criminais se move por razões politizadas e que não se coíbe de violar, ele próprio, os princípios e leis que deve em primeira linha defender, traz-nos de volta a velha inquisição que se arrogava o direito de a todos julgar, na praça pública, a coberto de um poder absolutista e déspota e com as justificações da barbárie social que a denúncia caluniosa permitiam. Bastava, à época, lançar a suspeição sobre alguém que logo a “santa” inquisição vinha varrer essa escória com o lume da “fé”. Nos de hoje, basta a alguém lançar a suspeição sobre outrém que prontamente, alguma comunicação social a torna desde logo culpada aos olhos da opinião pública e que a ação pouco avisada e melhor pensada de um ministério público que permite a violação do segredo de justiça, atira para as ruas do enxovalho, da humilhação e degradação da personalidade e bom nome de pessoas que, até prova em contrário sustentada em sentença, são presumíveis inocentes.
É o estado de Direito que está em causa e toda a sociedade em geral e que a ninguém isenta de responsabilidade e melhor reflexão. Todos somos cidadãos com iguais direitos e deveres, consagrados na Constituição e todos nos devemos indignar pelos ataques bárbaros e vergonhosos a que assistimos e lutar pela sua defesa intransigente e pela proteção do bom nome, do direito à privacidade e dignidade enquanto indivíduos, sob pena de cairmos na imundície civilizacional de onde levámos séculos a sair e que nos anda a assolar novamente e com particular acutilância. Nada fazer é abrir as portas a tudo o que de pior existe na competição desenfreada entre pessoas, grupos, raças e diferentes credos e trazer de volta os autos de fé onde todos, sem exceção, podemos arder.