Os guias turísticos também fazem parte do mundo fascinante da Literatura, diferindo da literatura de viagens por dispensarem as memórias pessoais dos seus autores, e porque se destinam a dar informações ao viajante de forma prática, objectiva e impessoal.
Na generalidade, os estudos sobre os guias turísticos são ainda incipientes, e a sua evolução acompanhou a evolução natural de um lugar como destino turístico, ou contribuiu para popularizar destinos pouco conhecidos.
Hoje, cada vez mais se viaja por deleite e prazer, o que implica valorizar e conhecer regiões que no passado não eram alvo de interesse para o “tour”, a volta, o passeio, a permanência, a evasão e o descanso. Hoje procura-se autenticidade e não apenas evidências materiais sublimes da Antiguidade Clássica e Medieval, como Sintra, Tomar, Batalha ou Alcobaça.
Apesar de não se ter realizado uma pesquisa exaustiva nos antigos guias sobre Portugal, julgamos que a primeira vez que o Concelho do Cartaxo foi referenciado com alguma profundidade (não chega a ser uma descrição, porque não nos dá uma ideia estrutural da região), num guia turístico, foi em 1927 no “Guia de Portugal”, da autoria de Raul Proença (1884-1941), grande intelectual defensor do socialismo democrático e opositor do Estado Novo. O autor, apesar de formado em Ciências Económicas e Financeiras pelo Instituto Industrial e Comercial de Lisboa (actual ISCAL, Instituto Superior de Contabilidade e Administração de Lisboa), foi um insigne escritor e funcionário da Biblioteca Nacional, no tempo em que partilhava instalações com a Escola de belas Artes e o Conselho de Arte e Arqueologia (Academia Nacional de Belas Artes a partir de 1932), no antigo Convento de São Francisco de Lisboa (Chiado).
Até 1927, a região do Cartaxo é referida em diversos guias unicamente como importante centro vinhateiro. Com a publicação dos 7 volumes do “Guia de Portugal”, cujo 1º volume sai em 1924, admitimos que não foi apenas a região do Cartaxo que se estreou nos guias turísticos, mas grande parte das localidades portuguesas. O Guia, em formato de bolso, ou “pocket”, com os seus 16,5 cm de altura, está estruturado seguindo as linhas de comboio e as localidades que se alcançavam a partir das estações, em “carreiras”, “camionetas” e “carros de aluguer”, referindo em muitos casos, as empresas e particulares que os operavam.
Assim, a região do Cartaxo está inserida no volume II desta colecção de Guias, volume impresso a 31 de dezembro de 1927 e dedicado à Estremadura, Alentejo e Algarve. O capítulo IV é dedicado ao Ribatejo, no trajecto da Linha do Norte e Leste, num percurso designado “A Abrantes por Santarém”, que começa em Vila Franca de Xira e percorre toda a margem direita ribatejana no sentido sul-norte. Refira-se por curiosidade, que o pequeno capítulo V é dedicado ao Médio Tejo (Sardoal, Belver, Amieira e Fratel) e o capítulo VII à “Alta Estremadura”, que compreende o ramal de Tomar, e Atalaia, Ourém, Alvaiázere, Pombal, Ansião, Condeixa, Figueiró dos Vinhos, Castanheira de Pera. O Ribatejo que aqui aparece é o Ribatejo histórico, das povoações da ribeira do Tejo e sub-região da Estremadura, e não o Ribatejo com o grande “interland” que se quis criar com as províncias decretadas na década de 1930.
No conjunto deste guia, o destaque da região vai sobretudo para a paisagem do Bairro e da Lezíria, sendo Santarém a grande coroa monumental desta região de largos horizontes, que justifica uma extensa descrição e a deslocação a quem procura os valores do património (como fizera Almeida Garrett nas “Viagens na Minha Terra”). Fazendo um à parte sobre os futuros hipotéticos, acreditamos que se Portugal fosse um país interior, sem costa marítima, a atenção turística dada ao Tejo, o teria transformado numa Riviera tagana, como a Suíça fez com os lagos, ou a Hungria com o Lago Balaton. Com extensa costa, todo o turismo se virou ao mar e as praias fluviais que designavam de forma depreciativa como “praia dos tesos”, apenas se valorizaram nas últimas duas décadas por todo o país.
A região é ilustrada com um dos muitos mapas desdobráveis que a colecção reúne, assinado por A. J. Pedroso e datado de Abril de 1924. Quanto a fotografias, nada específico sobre o Cartaxo, havendo três fotografias que ilustram as Lezírias, sendo uma delas da autoria do Dr. Francisco Oliveira Feijão (1850-1918), ilustre cirurgião, professor e agricultor natural de Almada, apaixonado pelo Ribatejo, que viveu e faleceu na Quinta da Mafarra, na freguesia da Várzea, a 7 km de Santarém.
O que interessava ao viajante de 1927, que se sujeitava às esperas do comboio, e ao desconforto das camionetas por estadas de macadame ou terra batida? Não era certamente o Cartaxo, que o autor refere como “um dos mais importantes centros vinícolas do país, mas destituída do menor interesse para o turista”. O concelho é descrito brevemente entre as páginas 337 a 342, dando destaque às estações ferroviárias do Reguengo, Setil e Santana como pontos de partida da linha do Norte e Leste, tendo uma interrupção nas páginas 339 a 341 para descrever o Ramal do Setil (os 76 km da linha do Setil a Vendas Novas).
Como é lógico, sempre se fez Turismo na região do Cartaxo, o que se pode justificar pela abundância de quintas e pelas referências que a literatura nos deixou sobre permanências temporárias na região, não só do Cartaxo mas do Ribatejo em geral, onde era hábito a corte passar o Inverno. Essa forma de Turismo designava-se “Vilegiatura”, termo que tem origem no hábito dos romanos se retirarem para as suas vilas nos arredores das cidades, que funcionavam como quintas, e consistia em passar temporadas na província, fora do local de residência habitual, em casa de familiares ou amigos. O que aqui se considera sem interesse para o Turista, nas concepções da década de 1920, é o facto de não haver grandes monumentos, significativos museus, centros históricos medievais, arqueologia romana bem conservada ou estâncias termais, balneares ou de montanha com hotéis e funiculares relevantes, que justifiquem, por si só a deslocação.
No guia refere-se que na estação do Reguengo, a 61 km de Santa Apolónia, havia diligências para Valada, a 4 km, o “carro de aluguer” (táxi) de Valeriano Tavares. De Valada refere apenas ter havido uns paços reais e uma descrição da paisagem feita por Fialho de Almeida (que transcreveu). Também da estação do Reguengo se ia para Pontével, a 7,6 km, e refere os azulejos da igreja da Purificação e da capela do Desterro, o portal manuelino desta, a ponte do Rio da Fonte, a azenha de Marcelino Mesquita. Como é possível que este conjunto pitoresco, referido no guia de 1927 já tenha em parte desaparecido…!
Sobre a estação do Setil, a 2 km do Reguengo, o autor refere o ramal para Vendas Novas e carreiras e camionetes para o Cartaxo, a 5,2 km. Seria interessante estudar a importância deste ramal, inaugurado em 1904, na História Social da região do Cartaxo, tendo contribuído muito para a fixação de mão de obra proveniente do Alentejo, durante grande parte do século XX, primeiro na agricultura, oficinas e comércio e a partir da década de 1960 nas indústrias.
A estrada entre o Setil e o Cartaxo justifica uma breve descrição, referindo a diversidade de culturas: olivais, eucaliptos, prados e principalmente vinhedos, a subir para o Cartaxo, refere a Quinta da Aramenha como propriedade vinícola e a Quinta do Santo Cristo ou do Bom Jesus, com azulejos do século XVII “no género dos da capela dos Chavões” e a tradição “passeio” a este lugar na 6ª Feira Santa. O autor não refere os valores paisagísticos da estrada, que quanto a nós é das mais bonitas do concelho e o percurso hipotético da continuação do Ramal do Setil em direcção a Peniche, por Rio Maior e Caldas da Rainha, que nunca se chegou a fazer e que criava uma estação no Cartaxo.
Sobre informações práticas, são referidas a Pensão Cacela e as hospedarias Duarte e Júlio. Esta sabemos que ficava na Rua da República, nº 26, e as outras desconhecemos a localização. De grande importância para o viajante era a referência à água, afirmando a existência de “águas de Boa qualidade mas escassas”. Sabemos que a água canalizada só viria em 1935 e inicialmente numa distribuição para fontanários públicos. São referidos também a Praça de Touros e o Estrela Futebol Club, o Sport Lisboa e Cartaxo só seria fundado em 1935 (a 1 de Setembro).
O dia de descanso semanal era na 5ª feira. Possivelmente este dia foi decretado pelo município na sequência do decreto de 10 de janeiro de 1911, que estendeu o descanso semanal a outro dia para além do domingo, e a todos os sectores de actividade com excepção da laboração contínua (hotelaria, algumas indústrias, etc.) dia de descanso na tradição cristã, não cumprido rigorosamente, que acabou obrigatório com a legislação dos decretos de 7 de Agosto e 14 de Outubro de 1907. Muito mais tarde, em 1969, viria a semana inglesa para o comércio (não trabalhar ao sábado de tarde) e a semana americana (não trabalhar sábado).
O guia refere que o feriado municipal era o 1º de Maio. Sendo as comemorações do 1º de Maio proibidas pelo Estado Novo (só vindo a ser celebrado como feriado novamente em 1974), o município terá decretado o 1º de Novembro como feriado municipal. No entanto, passando este a ser feriado nacional em 1952, o município terá decretado feriado a 5ª feira da Ascensão, que tinha grande tradição na ida das famílias para os campos. A referência às feiras, é que se celebravam no 1º de maio e a de 1 a 4 de Novembro, que não refere como Feira dos Santos.
De monumentos refere o cruzeiro manuelino e a casa de Dâmaso Xavier dos Santos (Rua Batalhoz, nº6), neste caso, não pela arquitectura, mas pela História. Foi onde pernoitou D. Miguel (1802-1866), D. Pedro IV (1798-1834), Almeida Garrett (1799-1854) e Saldanha (1790-1876), que ali teve quartel-general de Outubro de 1833 a fins de Abril de 1834.
Refere que na saída do Cartaxo em direcção a Vale da Pinta “se pretendeu” ter travado a Batalha de Ourique. Talvez tenha feito aqui alguma confusão geográfica, pelo facto de aqui ser o Sítio do Sol Posto (que não refere), onde D. Afonso Henriques terá descansado após a Batalha e não onde ela se travou.
Nada mais refere sobre o Cartaxo entrando depois numa detalhada descrição do percurso do ramal do Setil a Vendas Novas, retomando mais tarde a Linha do Norte e Leste, para chegar à estação de Santana, que refere a 4 km do Setil e a 5 km do Cartaxo e mencionando que a estrada não era usada devido ao mau estado de conservação. Acrescento que este acesso do Cartaxo à linha ferroviária era mais antigo que o do Setil, construído em 1904. Julgo que esta estrada tinha sido aberta para Estação de Santana, inaugurada em 1856, por ser o ponto da linha ferroviária mais próxima do Cartaxo, tendo-se mais tarde construído o troço da estrada de Santana ao lenço das 3 pontas pelo administrador do Concelho (equivalente a presidente da câmara) José Ribeiro da Costa.
Na continuação da descrição do percurso, o autor faz uma significativa descrição do Palácio dos Chavões, que se avista do comboio. Casa que “tinha um cunho de nobreza feudal único, como reconheceu Herculano, entre todas as moradias da região ribatejana” é aqui descrita com o contributo de Luís Teixeira de Sampaio (1875-1945), diplomata, historiador, membro da Academia Portuguesa da História, e antigo proprietário da Quinta do Sampaio em Vale da Pinta. Teixeira de Sampaio estudou os Chavões, publicando uma monografia em 1921 e postumamente nos “Estudos Históricos”, publicados em 1984. Já no guia de 1927 é referido o estado de degradação, proporcionado por um incêndio recente e pelo terramoto de 1909. O grande destaque é dado aos azulejos nas salas do 1º Conde de Unhão (na época já quase destruídos), os da “barbacã” (referindo-se possivelmente aos muretes do terraço) e em duas alas viradas ao jardim, estes últimos, “que formam três grupos distintos pelo aspecto e pela época”: século XVII, primeira e segunda metade do século XVIII. No contexto dos Chavões, Teixeira de Sampaio refere o episódio dos últimos momentos de vida de Dâmaso Xavier dos Santos (1770-1844), enquanto rendeiro dos Chavões, que reflecte bem o carisma deste grande proprietário agrícola, que será como uma “Ferreirinha”, não do Douro, mas da região do Cartaxo que a História ainda tem de descobrir: “Sentindo-se mal foi procurar noutra parte alívio dos seus sofrimentos, de que não tardou a morrer. Mas teve o pressentimento de que não tornaria e quis despedir-se dos campos de Valada e dos gados, pedindo que o levassem pela última vez aos terraços dos Chavões. Chegado ali vieram os gados, seus e alheios, os touros, que eram o seu orgulho, conduzidos pelos campinos, passar em baixo, no sopé do palácio, como numa revista, numa derradeira homenagem àquele que fora, no dizer de Garrett, “a honra e a alegria do Ribatejo”. Dâmaso foi sepultado no primeiro cemitério municipal, situado onde hoje se encontra o Palácio da Justiça do Cartaxo e mais tarde trasladado para o actual cemitério, onde ainda hoje se encontra na rua principal. Quando nos referimos à Travessa do Comendador, raramente nos lembramos que se refere a Dâmaso, que deve ser a única figura com o nome em duas artérias do Cartaxo. A outra, é a Avenida Dâmaso Xavier dos Santos, na urbanização da Quinta das Correias.
O Cartaxo tinha sido objecto de elogios de vários escritores do século XIX, como Almeida Garrett (1846), António Augusto de Aguiar (1866), Pinho Leal (1874), Brito Aranha (1874), Esteves Pereira e Guilherme Rodrigues (1911), entre outros, que o consideraram uma vila moderna, activa, alegre, laboriosa, produtiva. Mas na década de 1920, a imprensa local queixava-se da falta de saneamento, electricidade, água canalizada, e mau estado dos pavimentos e das instalações de alguns serviços públicos, etc., comodidades que muitas sedes de concelho já tinham resolvido ou estavam a resolver. Por isso se compreende que o Cartaxo da década de 1920 não era para o turista característico da época, ávido de antiguidades, parques românticos e hotéis de charme, quando não se dedicava a alguns desportos.
Um Próspero Ano Novo
*O autor escreve segundo a antiga grafia.