Descartes foi pioneiro no seu tempo ao colocar a dúvida sobre a existência, assente na consciência de si mesmo. Pensar, mais do que qualquer facto, colocava o homem no centro das decisões de um mundo em mudança.
Mais de quatrocentos anos depois, após avanços notáveis em várias áreas científicas, a dúvida sobre quem somos subsiste inexpugnável e coloca cada um de nós no vértice de um abismo onde o ser é esmagado pela fria lógica do ter. Nos últimos 50 anos, após duas guerras mundiais devastadoras, o mundo conheceu tempos de crescimento e estabilidade como nunca antes e os avanços na medicina e farmácia permitiram que a população se multiplicasse até números impensáveis, para lá dos sete mil milhões.
A economia floresceu, as relações comerciais abriram portas em todos os quadrantes, o consumo tornou-se a meca da pujante indústria transformadora que chegou a todos e com todo o tipo de produtos. A filosofia capitalista avançou em passos de gigante com a capitulação comunista para sempre figurada na queda do muro de Berlim, nesse “longínquo” 1989.
O advento da modernidade chegou-nos pelo ar e por cabos finos, transformando paradigmas e criando o homem digital. Primeiramente numa linguagem em que as potencialidades de 0 e 1 revolucionaram a comunicação e depois tornando-o extensão de nós mesmos, onde os nossos dedos são a expressão empática da nossa ligação a um admirável mundo novo, algo longe do que Huxley imaginou por certo. “Touch” é algo que fazemos cada vez mais em gadgets e menos nas pessoas que nos rodeiam…
Chegados aqui existe hoje a percepção que o mundo acelerou e que os velhos pilares da sociedade foram mais que abanados, estão a ruir!
Há uns anos fomos confrontados com fenómenos como a globalização e a deslocalização de empresas e indústrias sem percepcionar ao certo o significado maior de todas estas transformações. Os inevitáveis “mercados” foram-se agigantando à medida que as lideranças se desvaneciam, numa imagem brutal de cedência dos valores sociais à (i)lógica fria e absurda dos mercados de capitais e investimentos subterrâneos, longe dos holofotes e escaparates que as janelas digitais promovem.
Somos hoje bens de consumo. Consumimos vorazmente tudo e nada, alimentamo-nos da torrente imparável de novidades tecnológicas que se atropelam e criam um “novo velho”, o ontem é passado e já foi suplantado pelo hoje e pelo último lançamento de algo que verdadeiramente não necessitamos mas que se tornou quase imprescindível à nossa nova condição de homo digitalis.
No meio de tanta transformação vimos a antiga estabilidade do trabalho ser vaporizada e assistimos impotentes à nossa fragilização enquanto bens activos de um mundo que quer colaboradores e não empregados, part-time e pop-up, empreendedores e visionários, crentes acéfalos nas virtudes de tudo vender, tudo comprar para ter mais, quando verdadeiramente temos muito menos.
Fomos obrigados a sair das nossas rotinas, a quebrar raízes, a apostar em partir em busca de algo tão primário como a sobrevivência. As políticas europeias foram-se tornando administrativas e burocráticas, cedendo em toda a linha à máquina germânica e às suas directrizes centralistas e geradoras de blocos dentro da união. O desafio da Europa é saber alinhar-se neste novo mundo em que o protagonismo perdido antes para os EUA é agora pujantemente liderado pela “fábrica do mundo”, essa nova China que se reinventou e soube tirar partido dos benefícios do capitalismo para se afirmar como potência imparável nesta nova realidade internacional.
Portugal tem hoje desafios acrescidos face ao seu papel dentro da UE e dentro de portas. Equilibrar a sua balança comercial e PIB e atenuar as crescentes desigualdades que a distribuição da riqueza empresta a uma cada vez mais envelhecida e frágil população, são traves mestras dos próximos passos que teremos todos de enfrentar. As assimetrias regionais estão a acentuar-se dramaticamente, deixando as regiões fora dos grandes centros entregues à gestão possível das autarquias e dos seus investimentos. A falta de propostas e trabalho obrigam a que cada português equacione o seu futuro imediato e se coloque na linha de partida para novos mundos, na busca de alcançar o que no seu país parece cada vez mais difícil. Foi assim para Angola e Brasil, para a Austrália e agora massivamente para Inglaterra. Mas as apostas são perenes e como em quase tudo nos dias que correm, nada é garantido, apenas o seu contrário. A economia mundial é revolta como o alto mar tempestuoso e nada nem ninguém parece conseguir prever sequer que garantes teremos como alicerces da civilização. A maior perda dos últimos 30 anos terá sido a sensação de estabilidade que os governos e países passavam aos seus cidadãos e que agora se transformou numa resignada assunção de que temos de estar onde haja trabalho e oportunidades, quebrando laços e afectos, separando famílias, criando uma legião de desapossados e sobreviventes um pouco por todo esse mundo.
Saber mover-se e sobretudo adaptar-se é o novo paradigma que se coloca a todos, neste tabuleiro das decisões emergentes a que somos sujeitos e que nos obriga a ceder nas expectativas e alinhar no vazio do desconhecido. As velhas caravelas dos Descobrimentos são hoje cada um de nós na senda de um futuro possível nas fronteiras do improvável…
Adaptemo-nos então. Saibamos entender que o mundo está a mudar rápida e imparavelmente e que cada vez mais saber aceitar essa realidade é uma competência essencial para poder ter futuro.
Num mundo em convulsão, em guerras constantes e com a atmosfera em ebulição, o panorama é cinzento mas ainda há esperança. Em cada um de nós tem de morar essa centelha para que um novo futuro seja possível. Mais são e justo, mais limpo e saudável, mais solidário e humano. Saibamos acreditar!!