Aficionados, cultura e dor

Por Ricardo Magalhães

No passado dia 30 de outubro, no âmbito da apreciação parlamentar, na especialidade, da proposta de Orçamento do Estado para 2019, a ministra da cultura Graça Fonseca afirmou que “a tauromaquia não é uma questão de gosto, é uma questão de civilização”. Esta afirmação originou uma grande onda de reações e de ataques por parte dos aficionados que sentiram assim agredida a sua liberdade cultural. Uma maré de indignação que conduziu a uma petição pública para a demissão da ministra, que em 9 dias registou quase 9 mil assinaturas, por esta ter alegadamente insultado “os portugueses, e em particular os cerca de 3,3 milhões que se afirmam aficionados e que todos os anos assistem livremente a espetáculos tauromáquicos em praças, TV e que enchem ruas de cidades e aldeias de norte a sul do País”. Mas como começou toda esta controvérsia?

Como já disse, a afirmação da ministra ocorreu na discussão do Orçamento do Estado para 2019, mais especificamente no âmbito da proposta de redução da taxa de IVA de 13% para 6% em alguns espetáculos artísticos. Não seria sério discutir esta questão sem lembrar que até há muito pouco tempo os artistas tauromáquicos foram favorecidos com uma isenção de IVA. Esta desigualdade foi corrigida no mês passado aquando da negociação do Orçamento de Estado para 2019, uma vitória do PAN após 4 anos em que reivindicou esta abolição. E é, por isso, extremamente interessante e demagógico que a Prótoiro (Federação Portuguesa de Tauromaquia), que lançou a petição pública de que falei, e a ATTP (Associação de Tertúlias Tauromáquicas de Portugal) venham agora apelar “ao tratamento dos cidadãos em igualdade de direitos”, quando estiveram sempre calados perante a proteção especial de que beneficiaram durante anos a fio os artistas tauromáquicos. E de se basearem nisso e no facto da ministra não se identificar com a cultura tauromáquica para exigir a sua demissão. Ora, isto é o mesmo que o ministro da Agricultura e das Pescas não gostar de sardinhas ou de salmão. Seria muito mau se para se eleger esse ministro o mesmo tivesse que se revelar apreciador de todos e quaisquer peixes ou culturas agrícolas. É completamente descabido. Da mesma forma, um ministro ou ministra da Cultura não tem que ser consumidor de todas as atividades culturais que existem no nosso país, e que são felizmente muitas e diversificadas.

Nunca expus publicamente, exceto em conversas informais, a minha opinião sobre as touradas. Nunca achei que se justificasse ou fosse fazer a diferença, até porque felizmente existem outras pessoas que vêm fazendo-se ouvir e alertando para aquilo em que acredito. Opto, no entanto, por o fazer agora pois todas estas acusações me revoltaram por serem no meu entendimento injustas e excessivas e por, por detrás delas, não existirem valores, mas sim interesses económicos, que a comunidade tauromáquica tapa com o manto da “tradição” e “liberdade cultural”. Os aficionados que gastam o seu dinheiro para assistir a eventos tauromáquicos esses sim defendem a tauromaquia de forma desinteressada. Mas não acredito que o vulcão desta onda de indignação sejam essas pessoas, até porque o que está em causa não é o fim das touradas, mas sim a não redução do IVA para estes eventos.

Senti-me revoltado, mas isso por si só não teria sido suficiente para esta crónica ver a luz do dia. A gota de água deu-se na noite do dia 5 de novembro. Estava a jantar quando no Jornal das 8 da TVI Miguel Sousa Tavares comentava no seu espaço de opinião este mesmíssimo tema. Dizia ele que “é evidente que está a crescer uma perseguição às touradas”, apontando imediatamente um culpado: André Silva do PAN. “Sozinho aterroriza o parlamento inteiro. Ele mete mais medo que um touro selvagem na arena.” De seguida, Miguel Sousa Tavares relata que “no outro dia estava a fazer zapping. Eu não sou aficionado, mas gosto do espetáculo em si, visualmente. E calhei na corrida RTP, que é de facto uma tradição. Acabou já depois das 2 da manhã porque há uma lei que proíbe de emitir mais cedo. E eu percebo porquê. Dizem que a lei é para não impressionar os menores, os quais veem coisas muito piores na televisão a horas normais, já para não falar nos seus videojogos ou nas redes sociais. Coisas mil vezes pior. E eu percebi que aquilo não é para proteger os menores da crueldade do espetáculo. É que a corrida da RTP foi de tal maneira bonita que eles têm medo que os jovens gostem de touradas. Essa é que é a verdade. E por isso aquilo era um ato de censura. Eles tinham medo que as crianças ficassem fascinadas com o espetáculo. Porque do ponto de vista equestre aquilo era simplesmente deslumbrante. E eles têm medo. Ora, começasse assim, uma maioria impõe a sua ditadura do gosto à minoria, e é assim que nascem os Bolsonaros. É assim que o povo acaba a votar nos Bolsonaros.”

Acontece que a lei enunciada por Miguel Sousa Tavares não existe. Houve, de facto, em junho deste ano, um projeto de lei do Bloco de Esquerda que procurava proibir a transmissão de touradas na televisão antes das 22h30. Mas esse projeto de lei foi recusado pela ERC (Entidade Reguladora para a Comunicação Social) por considerar que os espetáculos tauromáquicos “não são sequer suscetíveis de influir negativamente na formação da personalidade das crianças e de adolescentes”, não havendo por isso “quaisquer impedimentos legais à sua transmissão”. Ou seja, Miguel Sousa Tavares parte de uma informação falsa que transmitiu aos telespectadores para daí concluir por nada mais do que pura intuição que o que se passou naquela noite foi um ato de censura. Pior, fala numa “ditadura do gosto” e ainda associa a Bolsonaro aqueles mostram compaixão para com os animais torturados. Agora pergunto: que regimes são aqueles que mobilizam as pessoas com base em teorias da conspiração e narrativas de perseguições, praticam a manipulação de informação e recorrem à falácia e a verdades infundamentadas, distorcendo completamente a realidade, para dessa forma conseguirem levar a que uma ideia seja aceite pela população? Ora, são precisamente os regimes ditatoriais de que ele fala. Isto é, Miguel Sousa Tavares acusa os outros daquilo que está a fazer. E isto é no mínimo caricato e reprovável. Não estou com isto, assim como a ministra da Cultura, a defender o fim das touradas. Estou apenas a questionar e a expor as falências e defeitos da argumentação dos defensores da descida do IVA nas touradas.

Correndo o risco de ser incompleto, a ética é um acordo informal estabelecido entre os indivíduos de uma sociedade sobre os princípios reguladores da sua ação, de forma a harmonizar a vida nessa mesma comunidade. Desta forma, penso não fazer sentido falar-se de ética para com os animais, pois seria sempre uma ética unilateral, apesar destes viverem no mesmo “habitat” que nós. Não temos por isso qualquer responsabilidade ética para com os animais nem as nossas ações para com eles poderão ser desse ponto de vista questionáveis ou reprováveis. Admito, portanto, que os aficionados possam ter legitimidade em manifestar-se contra o fim das touradas. No entanto, uma coisa é falar-se de ética, outra é ser-se humano. E nesse aspeto as touradas (pelo menos neste formato, em que touros são torturados com farpas até à morte) são um espetáculo bárbaro e de violência gratuita, que representa um contrassenso relativamente aos valores defendidos por uma sociedade moderna. Não é que os aficionados e cavaleiros sejam incivilizados ou selvagens. É só que, sem se aperceberem, estão naquele momento a massacrar um animal que não pediu para estar ali. E a compaixão e a piedade por aquele ser vivo aparece quando tomamos consciência disso mesmo. É, aliás, assim a evolução do conhecimento e da cultura: um processo continuo de procura pela consciência e realização.

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E termino só com um apelo: peço ao governo que não proíba as touradas e que reduza o IVA das mesmas para 6%. Mas com uma condição. Continuem com os forcados, os toureiros e as largadas. Continuem até com os cavaleiros e os cavalos, mas deixem por favor de espetar farpas em animais. Façam a festa sem isso. No dia em que isso acontecer, eu prometo aqui que serei o primeiro a dirigir-me a uma arena para assistir a uma corrida de touros e, mais que isso, prometo que irei mesmo incentivar toda a minha comunidade, cartaxeira e ribatejana, homens, mulheres e crianças, a estar presente. Pois nesse momento sim, estaremos a incentivar na população o gosto e o respeito pelos touros. O Ribatejo é das regiões mais castiças do nosso país, em que a realidade rural e a proximidade com a terra e a Natureza ainda existe. Não matemos essa tradição. E não matemos os touros.

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