De há uns anos para cá, as praxes académicas tomaram conta das nossas principais cidades. Não se efectuam só em Setembro, época inaugural da Academia, mas prolongam-se por todo o ano.
Chega Setembro e, em Lisboa, é observar os castigos, humilhações e suplícios por que passam os caloiros. Jovens vestidos de negro, imitando o traje coimbrão, voam como corvos sobre Lisboa. Muitas vezes estou na Torre do Tombo e através dos grandes janelões da sala de leitura deste arquivo nacional, posso observá-los com as suas brincadeiras idiotas.
Não sou contra a praxe, desde que esta não seja violenta e seja integradora. Sou contra a praxe violenta, que infelizmente parece ganhar terreno, todos os anos. Muitos professores universitários e investigadores têm a mesma opinião, e até alguns reitores, que já o disseram publicamente, mas ainda nenhum Conselho de Reitores teve a coragem de proibir este medievalismo em pleno século XXI. Parece que as Academias e alguns dos brilhantes cérebros dos veteranos ficariam muito perturbados e ofendidos.
Em 1952, num livro que escreveu (mas que deixou inacabado), intitulado Abraço de Irmãos, o meu tio-bisavô, o tenente-coronel Carlos Alberto Cacella de Victoria Pereira, que tinha filhos a estudar em Coimbra, já se insurgia contra a praxe. Em 1952! Estamos em 2015 e pouco mudou neste campo.
Quando entrei em 1988 para a Universidade, conheci uma Escola, a Universidade Nova, uma escola pública de qualidade, de criação recente, pois fora fundada em 1973. Tinha e tem grandes Professores, e na época tudo o que se aproximasse dum espírito coimbrão em Lisboa era à partida pouco alimentado e até mal visto. Eram raros os estudantes que usavam capa e batina, os professores não escreviam sebentas, nem mandavam comprar sebentas da sua autoria. A bibliografia era extensa, sobretudo francófona, anglófona, castelhana e portuguesa. Contudo, uma minoria, à época, tentava, de uma forma fandanga imitar os costumes de Coimbra, o que em Lisboa é impossível. Iam até às praxes e às bênçãos das pastas num estádio universitário – também eu não escapei, não foi violenta, mas mais tarde, nunca praxei ninguém. Alguns veteranos eram os imberbes do segundo ano, que pareciam divertir-se a humilhar os recém-chegados.
Em Lisboa é muito mais difícil fazer vida académica, estamos a falar de Lisboa e da Grande Lisboa, que ultrapassa os mais de dois milhões e meio de habitantes. Terminam as aulas e muitos estudantes regressam imediatamente a casa, aos seus bairros lisboetas, ou às linhas suburbanas que vão até Setúbal e Sintra, ou quase suburbanas que se estendem até Santarém. Não há tempo, não há espírito académico, e cada um corre para seu lado. Contudo, nos últimos quinze anos, a praxe voltou em força. Em sussurro, à portuguesa, professores, investigadores e bastantes alunos são contra esta patetice; publicamente, muito menos. Estudei em três universidades, duas públicas e uma privada. Em nenhuma delas pratiquei praxe.
Parece que o ser humano tem necessidade de rituais e de estranhos códigos de humilhação e de prepotência, que só a psicanálise poderá explicar. Aguardo não por D. Sebastião, mas por um reitor que ponha fim à praxe violenta, que tenha a coragem de ir contra movimentos académicos e de veteranos, que estão vinte ou mais anos a fazer uma licenciatura. Se a praxe for Inter Pares e integradora, nada tenho contra. É uma forma de se ir conhecendo os cantos à casa.