O já anunciado fim confirma-se com a entrada em 2017. A “velha” Horta fechou portas. Sem estrondo mas com mágoa de quem muito lá viveu.
Os tempos mudam e com eles os hábitos e trajetos sociais. O tempo das discotecas morreu. As longas noites de casa cheia de jovens alegres, vindos de todas as paragens, para dançarem e conviverem nas pistas, bares e jardins são agora passado, uma sombra vaga de tempos que os mais novos já não entendem.
Mais triste é perceber que fechou o último bastião do outrora Cartaxo folião e prazenteiro que a todos convidava e melhor recebia. Dizer a um jovem nascido na era dourada das noites cartaxeiras, no início dos anos 90, que quando ele despertava para a vida a sua terra era um dos mais icónicos centros de diversão noturna do país, só pode causar perplexidade face ao vazio que se apoderou dos dias de hoje, nesta outrora alegre e movimentada vila ribatejana.
Pelas piores razões, o Cartaxo deve ser alvo de estudo, um case study de como se deixa morrer uma vila feliz para erigir uma pseudo cidade moribunda. Há razões que muitos conhecem, mas menos souberam antever e precaver.
Vamos por partes. O Cartaxo teve vários armazéns de vinhos que floresceram a comercializar vinho a granel, nos tempos em que os velhos garrafões eram comuns nas tabernas e restauração em geral, para encher copos e jarros, dando expressão ao famoso vinho do Cartaxo, carrascão de tascas antigas, perdidas no tempo. Os tempos mudaram, a produção elevou a fasquia e a qualidade exigiu investimentos que estes intermediários não podiam acompanhar. E, aos poucos, desapareceram e com eles muita mão de obra do setor.
Outra área importante foi a metalomecânica. A incontornável Moali, a Metalgrupo, entre outras, foram baluartes de uma era de construção civil e obras públicas em Portugal. Com a declínio do setor foram caindo e divergindo para a exportação, sendo engolidas por grupos ou simplesmente desaparecendo e com elas mais postos de trabalho do concelho.
A tão falada zona industrial nunca arrancou de facto e a saída da autoestrada chegou, após muita luta mas nunca foi devidamente aproveitada para recolocar o Cartaxo no mapa, trazendo investimento ao invés de esvaziar, criando novas dinâmicas ligadas à mobilidade e acessibilidade. Mas assistimos a despesismo público incompreensível e a uma queda progressiva nos rendimentos das famílias e que o comércio local não conseguiu suster, soçobrando lentamente a este desmembramento do potencial gerador de riqueza no concelho.
O seu epílogo não se explica apenas pelo esvaziamento da cidade. São também os novos tempos e a mudança de paradigmas que marcam este fim. Se antes as pessoas cresciam na rua desde a infância, criando hábitos de convívio que depois transportavam vida fora, alimentando cafés, bares e restaurantes e as discotecas onde terminavam as noites, hoje tudo é diferente. As crianças vivem fechadas em espaços e quase nunca andam sozinhas. Só mais tarde e em grupos se vão juntando mas numa lógica de contacto e proximidade assente nas redes sociais e novas tecnologias. O “estar” passou a ser estar online e não marcar presença física num local habitual, onde as pessoas se encontravam sem marcação prévia, pois sabiam de antemão que ali tudo e todos iriam encontrar. Hoje temos de marcar e remarcar para que seja possível finalmente encontrar alguém que há muito não vemos e que vamos “encontrando” online!
Sinais dos tempos, incontornáveis e que ainda não entendemos na sua globalidade, dada a juventude destas novas realidades sociais e das mudanças que operaram, num quadro global de um mundo mais inseguro, fechado sobre si mesmo, competitivo e egoísta. O tempo do “nós”, da “rapaziada”, a “malta”, vive nas memórias de alguns e na prática ainda regular de outros tantos, já trintões e quarentões, crescidos de braços dados e na escola da rua onde tudo se aprendia e se ajudavam a formar consciências e se moldavam caráter e mentalidades.
São tempos que já não voltam. O mundo mudou e não foi, para já, para melhor. Há mais tecnologia disponível, mais facilidades de acesso a informação, mais velocidade de processos. Mas há menos tempo e espaço para que sejamos verdadeiramente “pessoas”, a fazer algo que sempre fez parte da identidade coletiva e que se vai, estranhamente, perdendo; o convívio e o prazer simples mas incomparável de confraternizar!
Acontece hoje em espaços fechados, entre casas, e menos em locais públicos. Com menos álcool e condução. Com menos folga para desvarios e excessos. E no meio de tanto rigor e controlo vão-se espartilhando dinâmicas sociais e matando espaços que existiam para socializar. A Horta da Fonte é “apenas” mais uma vítima destes tempos estranhos que o novo milénio nos vem trazendo. Lembremo-nos que já há alguns anos tinha fechado outro espaço icónico da mesma era, o Green Hill na Foz do Arelho. Morreu mais cedo por estar fora de uma localidade pois sempre foi alimentado por gentes vindas de outras paragens, a 20, 50 ou mais quilómetros e que, aos poucos, foram deixando essa alegre transumância e não tiveram sucessores nas novas gerações, crescidas noutros hábitos e longe destas romarias saudosas e dificilmente explicáveis à distância fria do tempo.
Adeus Horta da Fonte. Obrigado por tudo. Das animadíssimas matinés aos domingos, cheias de juventude em delírio, das primeiras noites na ainda pequena mas acolhedora versão, dos slows na pista entre amigos, das conversas animadas no jardim, das brincadeiras em redor dos bares e da muita e boa música que brotava das cabines onde os dj’s faziam rodar o vinil e aqueciam as pistas cheias de adrenalina (um abraço, caro Fernandinho).
Que se juntem os amigos da Horta e se faça um museu da noite cartaxeira, onde figurem os locais onde gerações se divertiram e fizeram desta terra um lugar feliz e onde todos gostavam de estar. A ideia está lançada. Juntem-se fotos, textos e testemunhos, artigos. A Horta da Fonte merece. Assim como a sua “filha” dona Horta Coice de Mula, o Quo Vadis (felizmente ainda aberto), o Oásis, a Cave, O Vai de Rastos, a Lipp’s, a Concorrência, entre outros. E que bem pode ser alargado a cafés, tascas a tabernas e restaurantes, muitos deles já desaparecidos.