Crónica de Vânia Calado
Perdia-se a conta aos arranhões e
nódoas negras. Se os tempos fossem outros era possível que a
competência dos nossos pais fosse questionada, mas ninguém tinha a
culpa dos miúdos que nasciam arraçados de Tarzan e com constantes
ataques de bichos-carpinteiro.
Naquela altura, que eu me
lembre, as bicicletas não tinham travões. Pelo menos, eu fingia que
não tinham. Lembrava-me deles quando queria fazer uma manobra
qualquer. Uma manobra tão espectacular que acabava comigo a saltar
por cima da bicicleta, o que fazia com que os meus joelhos fossem
amigos próximos da estrada mal alcatroada. Depois lá ia eu para
casa. Bicicleta na mão, lágrima no olho e joelho feito num oito.
Estava de volta no dia seguinte. Eu e todos os outros miúdos. Éramos
todos iguais: demasiado aventureiros e sem noção do perigo.
Tínhamos o hábito de subir a árvores
e fugir de casa. A última parte é mentira. Só nos escondíamos em
terrenos cheios de silvas e ervas à espera que fossem à noite nossa
procura. Anos mais tarde percebemos que conseguiam ouvir os nossos
risos à distância. Nós é que tínhamos tendência para ficar
surdos quando nos chamavam para jantar, tomar banho ou dar um
beijinho à avó que estava à nossa espera. Muito esperavam as avós
naquela altura.
Éramos os donos do nosso mundo. De cabeça
levantada, peito cheio, joelhos em sangue e cara vermelha de tanto
correr. Havia sempre tempo para mais uma corrida. Mesmo quando já
era noite escura e chamavam por nós, mas nessa altura já íamos rua
abaixo a ver quem ganhava daquela vez.
Caíamos todos os dias.
Ou quase. Betadine, água oxigenada, penso rápido, um nó na
garganta o beijo da mãe que tudo cura.
Ficaram as marcas das quedas e dos curativos que continuam a contar a sua história. A vez em que só existia o travão da frente, a outra em que se jurou que o ramo da árvore aguentava. Vivíamos com a cabeça cheia de sonhos e de sorriso colado na cara. Mesmo quando a água oxigenada ardia nas feridas.