Cartaxo Desaparecido – destruições do património edificado
Bagos da Memória, por Pedro Gaurim
De há décadas para cá e um pouco por todo o mundo, publicaram-se alguns livros sobre o desaparecimento de vilas e cidades, remetendo-se para um passado recente, num arco temporal de 150 anos, durante o qual a fotografia permitiu já testemunhar o que fora antes e o agora.
Em Portugal, os nove volumes publicados a partir de 1987 pela jornalista e escritora Marina Tavares Dias (n. 1962), sobre a Lisboa Desaparecida, foram talvez as primeiras obras de referência sobre o assunto. Inspiradores, os volumes têm feito as delícias de várias gerações que amam Lisboa e nunca perderam valor comercial. Por tudo isto, o registo da destruição das urbes, em imagens, é um assunto que interessa à sua História e à Memória, sendo até bastante anterior à fotografia. Lembremo-nos, por exemplo, de Piranesi no século XVIII, e das suas representações de ruínas em gravura.
No Cartaxo, por onde começar? Por princípio, as urbes vão mudando de fisionomia por diversos motivos, quer por desastres naturais, pujança económica ou a falta de cultura e gosto pelo antigo, associada ainda à falta de conhecimento dos técnicos e decisores do que deverá permanecer e como. Por vezes, o desenvolvimento súbito e acelerado num determinado período marca a sua fisionomia, regressando depois a momentos de estagnação. Neste caso, pese embora o Cartaxo tenha origens medievais, que definiram os caminhos principais, o desenho da malha da cidade é ainda resultante do crescimento verificado do século XIX e das alterações que ocorreram no século XX, motivado pela referida pujança. Hoje, torna-se difícil conhecer como seria a imagem do Cartaxo anterior ao século XIX (que eu saiba existe apenas uma imagem panorâmica, a de Pier Maria Baldi, do século XVII).
Todas as cidades que tiveram crescimentos acelerados em determinados períodos, a designação desses períodos contribuíram para adjectivar as próprias cidades: como exemplos, são as referências da Roma Imperial ou da Roma Barroca (séc.XVII), da Florença dos Medici (séc.XV), da Madrid dos Áustrias (séc. XVI e XVI, I), da Lisboa Pombalina (séc. XVIII), da Paris de Haussman (séc. XIX), da Santarém capital do gótico (sécs. XIII/XIV), do Barreiro industrial (séc. XX) etc. Em todos esses períodos as cidades floresceram e foram centros de produção de bens, de conhecimento e de memória. Hoje algumas dessas cidades preservam com rigor e atenção o que ficou desses períodos, pois definem a sua identidade e são muitas vezes são motivo de grande atractivo para o Turismo.
Nesse aspecto, as freguesias do Concelho do Cartaxo tiveram também os seus momentos caracterizadores: como Pontével no século XVII como atesta a particularidade da sua igreja, em Vila Chã de Ourique entre finais do século XIX e inícios do XX como se verifica no desenvolvimento do seu edificado; Vale da Pedra teve o seu início do seu maior desenvolvimento dos anos 50 aos anos 80, etc.
Nesta abordagem, não tenho dúvidas que podemos falar de um Cartaxo do Liberalismo e da República, sendo que no Estado Novo o investimento foi sobretudo em edifícios públicos. Foi ainda durante a Monarquia Liberal e devido a muitos esforços e investimentos particulares de grandes e pequenos produtores e negociantes de vinho, rodeados e apoiados de oficinas que quase de tudo produziam, que veio a desenvolver-se uma próspera estrutura urbana e social que se desenvolveu e manteve até finais do século XX. É essa estrutura urbana que ainda hoje se existe parcialmente e que urge identificar, compreender e preservar na memória.
Desaparecimentos para re-construir o Cartaxo do Liberalismo e da República
No século XIX demoliu-se o Convento do Espírito Santo e a sua Cerca para se construir a Câmara Municipal e a Praça de Touros, transferiu-se o cemitério em redor da igreja e transformou-se aquele espaço na Praça (incorrectamente designado largo) de São João Baptista. O Pelourinho do Cartaxo, desmontado após os conflitos liberais e as secções da sua coluna acabaram nas bicas do Fontanário de Santa Cruz, inaugurado em 1889.
Em 1878 inaugurou-se o actual cemitério, tendo-se transferido o cemitério de então, datado de 1830, que se encontrava localizado em terrenos da antiga Cerca do Convento, local onde se encontra actualmente o Palácio da Justiça. Como memória fez-se no actual cemitério uma arca jazigo, que ainda existe, onde se reuniram e honraram as ossadas que se encontravam dispersas não identificadas.
A primeira destruição do século XX ocorrida no Cartaxo deverá ter sido a torre da igreja, que desabou com o terramoto de 1909, tendo sido reconstruída em 1914, o mesmo ano em que se foi demolida a Capela de S. Sebastião sita na rua com o mesmo nome, vindo o espaço desocupado a servir para se aumentar o Hospital de Santa Cruz.
Também a Quinta do Santo Cristo, do século XVII, acabou por perder as suas características na década de 1970 com a sua transformação em exploração pecuária de suinicultura, sobrevivendo apenas a capela de peregrinação local.
O Desaparecimento (parcial) do Cartaxo do Liberalismo e da República
Ao longo do século XX houve vários incêndios destruidores do edificado: a antiga fábrica da EMEL (Empresa de Moagem da Estremadura Lda.) com acesso pelo Beco Dr. Júlio Montez; e na década de 1950 ardeu a grande casa onde viveu Artur Peres Vilhena Barbosa, promotor da construção da Praça de Touros em 1874 , (localizado na Rua Dr. Lopes Baptista Nº8), subsistindo hoje a sua adega, transformada no ginásio Elegância Orbital; também em dado momento ardeu a adega que servia de armazém à empresa Abel Pereira da Fonseca, na Rua da República, que veio a ser recuperada, veio a ser demolida já neste século para se fazer uma construção que não se iniciou.
Na década de 1950, com a adaptação construção da adega de Francisco Bernardino viria a demolir-se um portal encimado com brasão no gaveto entre a Rua dos Combatentes do Ultramar (antiga Rua da Amendoeira) e a Travessa do Fróis (antiga travessa da Borra). Antes da década de 1960 foi ainda demolida uma grande adega que tinha pertencido a Artur Vilhena Barbosa, onde funcionou um teatro improvisado, para construção da Casa Paroquial.
No final da década de 1960, os arrumos e quintalão a Casa de António Mesquita, irmão de Marcelino Mesquita, que legou o seu quintalão à Câmara Municipal e que serviu ainda de pátio municipal, veio a ser instalada em 1970 a primeira Escola Preparatória José Tagarro, em pré-fabricados que viriam a ser demolidos entre 1992 e 1994. Também nesse ano o edifico da Câmara Municipal de 1867 sofreu um incêndio que o destruiu totalmente, ruínas que viriam a ser demolidas, desaparecendo também o primeiro parque infantil do Cartaxo, inaugurado uns anos antes e que fora promovido pelo jornal “Notícias do Cartaxo”.
Entre as décadas de 1960 e o fim do século, são demolidas casas, adegas e oficinas para dar lugar a prédios de apartamentos. Nessas décadas também se destruiu toda a lateral nascente da Rua Serpa Pinto para alargamento da Estrada Nacional 3, tendo-se perdido, pelo menos, dois edifícios de primeiro andar, com varandas e azulejos do século XIX, sendo em 1979 a vez do emblemático edifício de 1856, de Oliveira Santos, na Praça 15 de Dezembro, cujo local não teve ainda resolução estética (Fig. em destaque – arquivo Memórias Fotográficas do Cartaxo). Na Rua Batalhoz também se perderam pelo menos dois edifícios com azulejos nas fachadas, que vinham do século XIX.
Na década de 1990 demoliram-se devido a ruína, as adegas de Augusto Baptista Pego, na Rua Luís de Camões Nº 24, e há menos de dez anos, a sua habitação de primeiro andar na Rua Dr. Manuel Gomes da Silva, ambas datadas de 1924 e provavelmente obra e desenho de Júlio Augusto Marques. Nesta década, também foi demolido o primeiro celeiro da EPAC (Empresa Pública de Armazenamento de Cereais), na Rua Batalhoz, 44A, para dar origem ao um edifício onde funcionou o primeiro Minipreço e hoje é a Assembleia de Deus (o segundo edifício da EPAC ainda existe, na Rua do Progresso, sendo hoje armazém dos CTT). Também se demoliu o antigo cinema para dar lugar ao actual Centro Cultural do Cartaxo.
Também no nosso século se demoliram o portal e as adegas do século XIX, que foram da família Couto Viana, na Rua 5 de Outubro, Nº 5, onde ultimamente também funcionaram os Vinhos Machado, bem como, o portal da Quinta das Correias, do século XIX, para se poder abrir a rua que começa em frente ao Nº 215 da Rua José Ribeiro da Costa. O casario da quinta nunca conheci, e desconheço algum levantamento em planta que permita conhecer a organização dos espaços. Também há menos de vinte anos desapareceu um portal rústico de gosto barroco, na Rua Serpa Pinto Nº75, de tipo regional semelhante ao que existe no convento de Almoster, ao lado do edifício da empresa FoodTrucksFactory (antigas Carroçarias Honório), e também, um pináculo muito artístico, o que sobrava de um par de pináculos de um portão, onde se encontra o Minipreço. Também se demoliu o Arco do Médico, no Largo do Osório, onde funcionou o primeiro edifício das 4 câmaras Municipais do Cartaxo, tendo desaparecido com a demolição a sala com frescos no primeiro andar que visitei por duas vezes: quando ainda estava habitada e quando já desabitada e devassada.
Também em data incerta da segunda metade do século XX, uma obra na Nacional 3 à entrada do Cartaxo, veio a enterrar o tanque da fonte do Pingo Pingo e o desenvolvimento de silvados não cuidados durante anos quase destruíram a parede de alvenaria de pedra onde possivelmente ainda existe o depósito de retenção de água.
Também no século XX e por motivos que desconheço (fogo, infiltrações?), arruinou-se o chalet da Quinta do Vapor, do inglês Frederico Howell, que foi presidente da Câmara e cujo mito associado ao nome da Quinta faz crer que o telhado tinha como cumeeira o mastro de um navio. Já na revista “O Cartaxo”, de 1979, se referia estar em ruínas.
As casas da Quinta do Sousa, utilizada pela Câmara Municipal como parque de máquinas, também caminham para o desaparecimento. Grandes indústrias criadas na década de 1960: como a Moali, a Argibetão ou a Interagro, são hoje uma miragem da arquitectura industrial dessa época em avançada deterioração.
A destruição mais traumática da comunidade deu-se talvez tem 2008 com a destruição do jardim da Câmara, desenhado e relvado na década de 1930, para dar lugar à construção do estacionamento subterrâneo. Apenas teve de positivo o levantamento arqueológico do convento franciscano do Espírito Santo.
As freguesias
Também as freguesias foram afectadas por destruições, principalmente Pontével, onde desapareceram capelas, como a de São Pedro e casas estremenhas com alpendres, tendo a mais traumática para a comunidade, sido a da destruição da antiga Capela de Nossa Senhora do Desterro na década de 1970.
Na Ereira e Valada as adaptações litúrgicas pós concílio do Vaticano II foram pretexto para fazer desaparecer a talha dourada. Em Valada foi mesmo demolida uma invulgar estrutura com lanternim para construir o Centro Paroquial, e nesta localidade onde a igreja tinha altar principal e colaterais na nave, os paroquianos reagiram muito mal. Em Vale da Pinta desapareceu, em tempos muito recuados, a Capela de São Gens e mais recentemente, foi demolida a antiga escola, um dos edifícios mais interessantes que existiu na localidade, e foi construído o edifício da Junta de Freguesia.
Em Vila Chã de Ourique, a Capela de Nossa Senhora das Angústias, na Quinta dos Chavões, também do século XVII, sendo propriedade privada, mas de acesso público até há algumas décadas, em determinada altura sofreu um incêndio. Nesta Quinta, os painéis de azulejos foram vendidos e dispersos, encontrando-se hoje uma parte felizmente preservada na Fundação Espírito Santo Silva.
Na Lapa, o processo de ampliação da Igreja Paroquial inaugurada em 1995, removeu antigos altares e um moinho de farinha, de tipo industrial, com a sua característica estrutura de armação metálica de treliças viu as suas pás serem retiradas*.
Em relação destruições parciais, há que referir a retirada de azulejaria de fachada antiga, grades artísticas de varandas, chaminés antigas substituídas por chaminés modernas, platibandas com relevos artísticos que são removidos em vez de recuperados etc. etc.
A mais recente destruição ocorreu na freguesia de Pontével. Foi a da fábrica de Cerâmica Gaia, na Cruz do Campo, demolida em Julho passado.
Para outra altura ficará a referência ao património em risco, aquele que está em vias de fazer parte das ruínas da memória.
Só referimos neste artigo o património edificado que tinha interesse arquitectónico ou histórico que desapareceu, podendo a lista estar incompleta. Devemos perguntar-nos hoje qual o património que queremos que chegue ao século XXII e para isso devemos conseguir convertê-lo para as novas funções sem o desvirtuar. A prática já não é recente e só precisa de interessados.
*Agradecemos a Ana Carina Azevedo a informação complementar: o moinho pertenceu ao seu bisavô Francisco Inácio Ribeiro, tendo sido herdado pelo filho, José Afonso Ribeiro. A armação metálica foi adquirida em Figueiros (Cadaval), por volta da década de 1960, tendo substituído as tradicionais velas de pano.
O autor escreve segundo a antiga grafia