Afastada que estava a pérfida pretensão de apelidar a Feira dos Santos como “Feira dos Diabos”, com o touro já capturado de regresso à manada, de onde nunca devia ter saído, havia que tirar partido da calmaria agora instalada, usufruindo do muito que a feira ainda tinha para nos oferecer.
Agora, era ver a rapaziada, aquela que, como eu, com 10 paus no bolso, tivera permissão dos pais para deambular pela feira, sem ter de prestar contas a ninguém, à rédea solta, a desfrutar dos mais variados cenários. O carrocel era mais frequentado pelas meninas, porque os rapazes preferiam os carrinhos de choque. E maior foi o choque, quando me abeirei da autopista e dei com o meu tio paterno, o Chico Porreiro (só de alcunha), protagonizando uma acesa discussão com os demais utentes do recinto, condutores, ou pseudo, como ele. Para cúmulo, levava, como pendura, a sua filha de, apenas, 6 anos. Sentindo-se vítima de uma conspiração daquele pessoal que, através de choques e mais choques, em jeito de provocação – pensava ele – acometia contra o seu bólide, podia lá o homem – ele que fervia em pouca água – ficar quedo e mudo!… O tio Chico, que nunca, em momento algum, tinha pegado num volante, nem dos de brincar, entendeu que, tendo pagado uma sessão num daqueles carrinhos, tinha o sagrado direito de se recrear como muito bem entendesse, dando à viatura o ritmo e rumo que muito bem desejasse sem ser minimamente importunado. Nem que fosse ele o único a conduzir em contramão… Então, de cada vez que algum carro se esbarrava contra o seu, era o bonito! A rapariga chorava. Ele espumava, cerrava os punhos e, em alta gritaria, lançava os mais acutilantes e vernáculos impropérios ameaçando tudo e todos. Nem o funcionário do parque que, pacientemente, tentava corrigir-lhe os movimentos, escapou à fúria do Chico. Eu sentia muita pena da miúda, mas, vendo que não lhe podia valer, optei por me afastar da zona, não fosse ser vítima da fúria de algum desordeiro, ainda que, naquele caso, o desordeiro-mor era o tio Chico Porreiro.
Fui andando, bisbilhotando aqui e ali, e sempre que se vislumbrava um magote de gente, era sinal de que havia espetáculo. Achei-me, então, perante um círculo de povaréu, por entre o qual tive de esgravatar a fim de descobrir o que de tão interessante haveria no seu interior. E como se me afigurou que não se pagava nada, agachei-me e permaneci logo na primeira fila. Soube que a Cena I, a do galo, já tinha terminado. Mesmo assim, pelo aparato, dava para ver que valia a pena esperar pela cena seguinte.
Uma trilogia artística em que o pai, além de seboso e com fartos bigodes, era o adestrador; a mãe, espécie de ramelosa, seria a partenaire; o puto, p’raí com uns dez anos, além de manobrar a boina na ação de pedinchão, exibia um par de feijocas nasais e carregava com uma valente camada de piolhão de asa, que sacudia e coçava com sofreguidão, desde a testa até ao pescoço, passando pela cova do ladrão. Os adestrados eram: um galo que, sendo de penas, carne e osso, o dono dizia que era oriundo de Barcelos; uma cadela-ursa careliana; uma macaca da Malásia e uma cabra montês, oriunda das Astúrias.
Crónica publicada na edição de dezembro do Jornal de Cá.