Com o passar dos anos e com o ego mais amadurecido, tendente a puxar para uma mentalidade de pré-adolescente, o receio que, em tempos, havia manifestado acerca do modo como o pessoal do concelho se entenderia e comunicava entre si, já não fazia grande sentido, acreditava eu. Ainda que não houvesse uniformidade de pronúncia a nível concelhio, desde que o pessoal estivesse imbuído de um espírito de colaboração, o óbice seria facilmente ultrapassado. Ainda assim, o que nos valia era a fonética e a matemática não andarem de braço dado, senão, estando Vale da Pinta e Pontével separadas por 2 km, e sendo a disparidade linguística abissal, se a proporcionalidade fosse direta, a 20 km teríamos uma nova Torre de Babel.
Agora, cada mancebo, oriundo das freguesias e lançado no mercado de trabalho da vila, levava consigo, como currículo linguístico, a fonética da terra. Alguns deles, os menos prendados, além desse abstrato predicado, iam apetrechados com uma gamela, uma enxada ou uma foice; os de sorte mediana envergavam um fatinho adquirido num tendeiro no mercado mensal, ou, apenas, um fato-macaco de zuarte, se o destino fosse a área da ferrugem. Tudo dependia da especialidade onde iriam ser inseridos.
Concentrando-se no Cartaxo a base do núcleo empresarial, que havia de albergar a maioria daqueles imberbes rapazes, muitos cartaxeiros, tirando partido dessa circunstância, defendiam o princípio de que o ónus da adaptação às “regras de bem falar” era problema dos forasteiros. Lá no seu conceito, o povo da vila teria um discurso mais padronizado com a língua de Camões e, por isso, o único que, em todo o concelho, estaria habilitado a usá-la com fidelidade. Quem não tivesse aprendido antes, também não podia usufruir de quaisquer veleidades. Portanto, que se chegasse à frente e se atualizasse. Era assim, como o ter que aprender a falar à moda do Cartaxo…
Dei, então, comigo a confrontar-me com alguns mestres da linguística local. Eles interrompiam-me, amiúde, e explicavam-me certas matérias gramaticais, das quais nunca tinha ouvido falar na escola, nem visto insertas em quaisquer livros. Mas, de cada vez que eu recalcitrava, por desacordo com tais charlas linguísticas, levava uns abanões de orelhas, no sentido de baixar o ego e ter que reconhecer que, ali, quem mandava eram eles. Eu podia lá ficar calado, quando eles invocavam o Manuel da Machada, em vez de Manuel Machado; o Zé da Neta, no lugar de Zé Neto; o Luís da Pedreira, em vez do Luís Pedreiro; o Zé da Boina, por Zé Bono ou o Zé da Benta pelo Zé Bento… Eu nunca tinha ouvido tais dislates. Em Vale da Pinta ou em Pontével, por exemplo, havia o hábito de identificar um da terra pelo seu nome próprio, seguido do nome do seu progenitor, como: Zé da Gertrudes; Xico da Alice; Carlos da Elvira; Carlos do Abílio; João da Leopoldina; Zé da Aida, ou o António da Rosinda… Mas, nestes casos, ao invés do Cartaxo, não se deturpava o apelido ao pessoal. Era isto que eu, pequenote, argumentava para enfrentar os da vila, porém os meus regentes, em vez de reconhecimento, retaliavam corrigindo-me a atitude por meio de sopapos.
Artigo publicado na edição de julho do Jornal de Cá.