“Todos os dias”, por Carlos Gouveia
Fui novamente tentar a minha sorte, muito humildemente e com um modesto peso a mais em relação ao ano passado, começar e acabar a corrida nocturna de Santarém. Das Portas do Sol até à lua cheia, é o mote. É uma visão muito poética e romântica dos 10 quilómetros que nunca mais acabam, indo até à antiga Escola Prática de Cavalaria que parece que tem outros 10 quilómetros do planalto de Santarém lá dentro.
Acho que à medida que ficamos mais pesados e mais velhos, as distâncias são mais difíceis e cansam cada vez mais a serem percorridas. Se formos sozinhos com uma multidão desconhecida a correr ao nosso lado, sentimo-nos estrangeiros na terra que nos viu nascer e que pertenceu à nossa memória na palma da mão.
Cada rua, cada montra e cada luz de candeeiro que passamos é como um mundo novo e estranho, que não conhecemos como quando damos os primeiros passos em criança, que mais tarde corremos e andamos de bicicleta, com os amigos de sempre lá do bairro; quando saímos de casa com a mãe a ralhar, porque não paramos em casa e vamos ao cinema ver o último filme das nossas vidas, com os amigos que vieram de fora para estudar na universidade, como quando passei na rua escura e sombria do Teatro Rosa Damasceno, abandonado e morto no seu destino.
Esta já não é a minha cidade, nem dos amigos de sempre lá do bairro. Nem da escola de São Bento, dos jardins, da praça e das mesas de pingue-pongue da Académica e snooker do Varejão, das lojas da rua Direita e das pistolas de fulminantes no largo de São Nicolau, dos amigos para a vida, da boémia vida da universidade. Não a conheço e ela também não me conhece, vai morrendo aos poucos, com outras gentes que nunca irei conhecer.
Para o ano lá estarei, mais velho e mais pesado. Espero que os meus filhos me acompanhem um dia, para não morrer mais uma vez sozinho quando chegar às Portas do Sol.