Crónicas de um Comendador

Em vésperas de assinalarmos mais um aniversário da revolução dos cravos recordamos uma entrevista que Renato Campos deu à revista DADA. Corria o ano de 2007 e a revista DADA caminhava os seus primeiros passos. Fomos até à Quinta das Pratas ao encontro do primeiro presidente da Câmara Municipal do Cartaxo, eleito em democracia, para esta entrevista.

Abraçou a presidência da Câmara do Cartaxo aos 35 anos e governou o Concelho durante 18 anos. Agora, passados mais de dez anos desde que deixou o cargo, fala-nos desses tempos e de outras experiências da sua vida, como a sua condecoração de Comendador da Ordem de Mérito Público da República Portuguesa, revelando o seu humanismo e sentido de cidadania

Quem é Renato Campos? Sou natural do Cartaxo, onde nasci em 1941 sob o signo do Leão.

Fui criado no seio da pequena burguesia local. O meu pai era comerciante, oriundo da Beira Alta e a minha mãe era filha de um dos melhores alfaiates no Cartaxo, da altura.

É uma pessoa interessada e atenta ao que se passa à sua volta. Foi sempre assim, desde pequeno? Desde sempre fui muito participativo no meio envolvente. Fiz a escola primária no Cartaxo, o ciclo preparatório em Lisboa, estreei as novas instalações do Colégio de Tomar onde fui colega dos cartaxeiros António Jarego Leal e do saudoso António José Noca. Passei depois pelo Externato Marcelino Mesquita no Cartaxo onde terminei o curso comercial, e fui, então, para o Instituto Comercial de Lisboa, onde me diplomei. Mais tarde, entrei no Instituto Superior de Economia (ainda como ISCEF) onde acabei por me licenciar em Economia.

Pelo caminho, pratiquei alguns desportos, chegando a ser internacional júnior de hóquei em patins (modalidade que abandonei por motivo de doença) e vice campeão nacional de vela na classe de “snipes”. Claro que, também como jovem, académico e um pouco irrequieto, participei noutras atividades. Tocava viola num grupo de fados de Coimbra e fui em 1958, pasme-se, o ator principal da primeira foto novela que se fez em Portugal (ainda não existia TV) e que era publicada pela “Crónica Feminina”, a maior revista “cor-de-rosa” da época!

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Enfim, estudei (era um aluno médio), trabalhei desde os 19 anos e tive as minhas aventuras próprias da idade numa Lisboa noctívaga muito agitada.

Decidiu seguir economia. Nesta altura, a política já fazia parte da sua vida? A Economia apareceu como resultado do curso comercial que fiz (como filho de comerciante era inevitável!) e que só abria sequência ao Instituto Comercial e a Económicas! A minha vocação nata era a medicina. Enfim, a economia também acabou por me apaixonar. Claro que a entrada na universidade em 1961, coincidiu com o começo das lutas académicas, com o início da guerra colonial, enfim, com a génese de todas as grandes lutas políticas que caracterizaram os anos 60. Espontaneamente, vi-me empenhado em todas elas, sofri as sequelas de um regime policial, e ainda hoje sinto um pouco a nostalgia do idealismo que foi vivido na altura e que acabou por ter as suas consequências históricas no Portugal de hoje.

Como é que chegou a presidente da Câmara do Cartaxo? – Na época, sentia-se preparado para liderar? A revolução de Abril apanhou-me jovem, casado, mais amadurecido mas desde logo empenhado em participar nos seus ideais democráticos. Tive a satisfação, conjuntamente com a minha mulher e o Rogério Coito, de organizar o primeiro comício no Cartaxo, onde vieram a participar, entre outros, o Manuel Alegre e o Piteira Santos. Daí, em diante, eu e a Maria José andámos sempre na primeira linha da atividade política do Cartaxo. Por isso, quando chegou a hora da escolha dos autarcas para as primeiras eleições livres, lá apareci eu e a minha mulher nas listas do PS, partido onde começamos a militar desde maio de 1974.

Na altura, podia parecer uma aventura irresponsável. Mas tinha 35 anos, amava o Cartaxo e tinha um entusiasmo contagiante em participar activamente no novo Portugal e no desenvolvimento da minha terra.

Como é que encontrou o Cartaxo assim que se viu como presidente? O Cartaxo em 1977 era um concelho rural com muitas carências. Basta recordar que só havia água canalizada e saneamento básico na vila (não em toda!); o ensino tinha só chegado, e em condições provisórias, ao Ciclo Preparatório; não havia eletricidade em algumas povoações como na Lapa, Reguengo, etc.; os sacos do lixo eram recolhidos pela única camioneta da Câmara; não havia edifício camarário, nem em quase todas as freguesias postos médicos, mercados, juntas de freguesia, espaços verdes…; os Bombeiros tinham como sede um velho barracão, etc., etc.. Enfim, um mundo de carências por resolver e de falta de meios, que dava para desmoralizar.

Lembro, no entanto, que em 18 anos de liderança autárquica, nunca consenti, por princípios éticos, que o meu nome figurasse em qualquer placa inaugurativa de obra ou equipamento que fosse pertença do município.

Senti, então, que o que aprendi em matérias de desenvolvimento regional e planeamento económico, eram peças fundamentais para equacionar, com alguma lógica, o desenvolvimento equilibrado do concelho, priorizando as necessidades mais prementes. No entanto, se esses conhecimentos me foram muito úteis, muito pouco teria sido feito se não tivesse contado com o trabalho leal e empenhado dos meus colegas autarcas e com a colaboração incentivadora da população do concelho. Viveram-se, é certo, momentos difíceis e por vezes frustrantes, mas humanamente maravilhosos!

No momento de deixar este cargo de liderança experimentou o sentimento de ‘missão cumprida’? Senti que tinha a consciência tranquila de ter feito o que era possível com os meios de que dispus, mas não com a sensação final de “missão cumprida”, pois sabia que havia ainda muita coisa por fazer, próprio, aliás, de uma sociedade em constante mutação.

Agora, com o distanciamento de mais de uma década, olhando para trás, como vê o seu percurso enquanto presidente da Câmara do Cartaxo? Se bem que com a consciência tranquila, não posso evitar alguma frustração por não ter conseguido deixar o concelho qualitativamente ainda mais desenvolvido. Mas também com muito orgulho por ter conseguido fazer muitas e diversas obras que eram indispensáveis num processo de desenvolvimento integrado e harmonioso ao qual, felizmente, foi dada continuidade. Lembro, no entanto, que em 18 anos de liderança autárquica, nunca consenti, por princípios éticos, que o meu nome figurasse em qualquer placa inaugurativa de obra ou equipamento que fosse pertença do município. A obra era coletiva e devia ser assumida como tal. Hoje, sinto que talvez tenha lesado os historiadores desta terra, que vão ter dificuldades em identificar corretamente no futuro, os homens e os factos que deixaram marcas no seu percurso.

A marca que mais prezo, seja a “escola da democracia” em que se transformou o município, o diálogo construtivo e tolerante e a amizade que ainda hoje perdura entre muitas mulheres e homens

Que marcas deixou no Concelho? Algumas das marcas que, porventura tenha deixado, foram as transformações de uma sociedade rural, social e culturalmente debilitada, como era o Cartaxo em 1977, para um concelho que em 1993 já possuía dos melhores indicadores de qualidade de vida do distrito de Santarém. Mas talvez, a marca que mais prezo, seja a “escola da democracia” em que se transformou o município, o diálogo construtivo e tolerante e a amizade que ainda hoje perdura entre muitas mulheres e homens que, como autarcas de vários partidos, sempre se respeitaram e souberam dignificar, neste concelho, a democracia e o Poder Local.

Ao olhar e ‘sentir’ o concelho, é mais ‘fácil’ governá-lo ou vê-lo ser governado, sem ter qualquer outro poder senão o do voto? Sem dúvida que é mais apaixonante “sentir” o concelho, tomar as decisões da sua governação e constatar no final os resultados alcançados. No entanto, também é importante a posição de apenas “olhar” o concelho e agir através do voto. Todavia, considero que a cidadania moderna não nos deve deixar apenas espetadores críticos ou apáticos. Exige, sobretudo, que participemos mais ativa e civicamente nas decisões da comunidade. A democracia não se faz com “iluminados” em quem delegamos – mesmo através do voto – a competência total para nos governar!

Depois de tantos anos como presidente de Câmara, como foi regressar à vida de cidadão comum? Recordo, também, que para além de ter sido presidente de Câmara em cinco mandatos consecutivos, desempenhei em 1984, a convite do Governo, as funções de Diretor Geral da Administração Local com a incumbência de reformular e modernizar a legislação autárquica. Foi um trabalho apaixonante, do qual me orgulho, entre outras, de ter sido o principal artífice da Lei 100/84, a “bíblia” legislativa do funcionamento das autarquias e dos seus órgãos que veio a vigorar até 1999. Isto para reforçar que, durante quase duas décadas da minha melhor idade ativa, estive sempre ligado ou à Câmara do Cartaxo ou à construção do Poder local democrático. Quando deixei tudo isso, foi natural que me sentisse, emocionalmente, um pouco órfão e andasse um pouco trôpego à procura de um novo rumo! Mas o tempo e outras motivações ajudaram a resolver a situação.

Sentiu-se uma ‘pessoa diferente’ depois de deixar o poder? O Dr. Mário Soares disse um dia quando deixou de ser primeiro-ministro que se sentia como passarinho fora da gaiola! Não sei se me aconteceu o mesmo, mas o deixar de carregar sobre os ombros tamanhas responsabilidades libertou-me mais para realizações pessoais mais próprias do cidadão comum.

É um ‘cartaxeiro de gema’? Nasci no Cartaxo, sempre morei no Cartaxo, fui o primeiro presidente de Câmara eleito na história do concelho e o que mais anos o governou. Hoje, continuo a ser um cidadão interessado e crítico pelas coisas do Cartaxo… será isso ser “cartaxeiro de gema”?

A nível profissional, o que é que tem feito e por onde tem passado, desde então? Em 1996, fui convidado para montar e dirigir um Gabinete de Estudos Regionais no Governo Civil de Santarém. Foi uma experiência muito interessante, que formou muitos jovens estagiários e publicou mais de trinta trabalhos sobre várias temáticas do desenvolvimento do distrito de Santarém. Por dificuldades financeiras este Gabinete foi extinto em 2005, tendo nessa altura recebido do Governador professor Mário Albuquerque, um Louvor público de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido. Depois disso, tenho trabalhado em regime liberal, como coordenador ou colaborador em diversos trabalhos de desenvolvimento da região do Vale do Tejo, o último dos quais, sobre as eventuais implicações da Ota na região envolvente.

Em tempos de lazer, o que é que gosta mais de fazer? As minhas preferências sempre foram diversificadas e evoluíram, naturalmente, ao longo dos anos. Fiz fotografia onde entrei em concursos internacionais; em música toquei viola e “arranhei” o piano; gosto de boa música, desde os grandes concertos clássicos, ao jazz do Miles Davis, a um samba de Jobim, a um bom fado do Carlos do Carmo, e, muito especialmente, a toda a música do Zeca. Na literatura tive o meu tempo de Hemingwai em que não esqueço “O Velho e o Mar” ou o “Paris é uma Festa”; li muito os neo realistas como o Redol ou o Soeiro Gomes; li toda a bibliografia de Fernando Namora, assim como me marcou o “Delfim” do Cardoso Pires, etc. Na atualidade, gosto da poesia do Manuel Alegre e do estilo muito moçambicano do Mia Couto, entre claro muito outros, que o pouco tempo que sobra da leitura dos volumosos semanários deixa para ler. Em matéria de cinema, hoje não vou muito, mas fiquei marcado pela fase do Fellini, Antonionni, do Wody Allen e do Scorcesse, enfim, todos os bons realizadores que fizeram filmes de antologia.

Mas, concretamente, em tempo de “far niente”, gosto mesmo é de passear junto ao mar nas areias do Baleal, sobretudo de Inverno!

Há alguma coisa que gostaria de ter tido e nunca teve? Há sempre qualquer coisa que ficou por fazer. Faltou-me, por exemplo, tempo e dinheiro para viajar, conhecer mais países e outras culturas.

A 10 de Junho de 1994 que recebi do senhor Presidente da República, Dr. Mário Soares, em ato público, a condecoração da Ordem de Mérito Público no grau de Comendador

E em termos de acontecimentos, há algum momento da história que gostasse de ter presenciado? Teria gostado de ter assistido à queda do “Muro” em Berlim, ou como reminiscências de um passado politicamente mais radical, ter conhecido pessoalmente Fidel de Castro.

Quem são os seus ídolos? Genericamente, os meus principais ídolos são as mulheres e os homens que todos os dias labutam por sobreviver e contribuir com o seu trabalho para um mundo melhor. Recordo, com muito respeito, o trabalho dos “médicos sem fronteiras” e de todos aqueles que, altruisticamente, contribuem em condições muito difíceis para que o flagelo da fome e da doença não mate ainda mais crianças! Esses serão sempre os meus heróis!

Estamos em vésperas das comemorações do Dia de Portugal. Considera-se um patriota. E, já agora, o que é para si ser patriota? Claro que sou patriota mas não “patrioteiro”. Lembro-lhe que o Dia de Portugal encontra-se, afetivamente, ligado à minha vida de autarca. Foi a 10 de Junho de 1994 que recebi do senhor Presidente da República, Dr. Mário Soares, em ato público, a condecoração da Ordem de Mérito Público no grau de Comendador. Se bem que as condecorações não sejam para invocar, sinto um enorme orgulho em pertencer ao restrito grupo composto por apenas três Presidentes de Câmara que, até hoje, em cerimónia pública do Dia de Portugal receberam tal distinção. Esta condecoração também deveria ter sido motivo de orgulho para a minha terra, pelo que me entristeceu não ter tido nesse acto a presença simbólica e gratificante de nenhum representante do Município do Cartaxo.

Enfim, ser patriota, hoje, é ser também “cidadão do mundo”, sem perder de vista os interesses próprios de um País que já deu “mundos ao mundo” e que hoje quer e tem o direito de ser uma voz activa, credível e respeitada nos fóruns mundiais.

Como vê os portugueses e o Portugal atual? Tenho vindo a assistir à extraordinária série televisiva “Um retrato social de Portugal” do professor António Barreto, que nos dá uma imagem diversificada muito fiel do Portugal de hoje e das mudanças que ao longo dos anos se operaram. De facto, temos atualmente um país a viver em paz, mais democrático, mais desenvolvido, mas onde ainda subsistem muitas desigualdades sociais e onde, também, é cada vez maior o fosso entre os mais ricos e os mais pobres!

A “revolução de Abril”, veio arejar o país e abriu-o ao mundo. Hoje, em termos de cidadania, para além de portugueses, somos cidadãos europeus e cada vez mais cidadãos do mundo. Daí o aspirarmos, legitimamente, a elevar os nossos padrões de qualidade, nomeadamente na justiça, na educação, na saúde, na administração pública, na qualificação profissional, etc., sobretudo elevar os níveis de confiança e auto estima dos portugueses, para que possamos, sem complexos, ombrear com outros povos e outros países.

Comparativamente, gostaria que Portugal possuísse os níveis elevados de qualidade de vida dos nórdicos, sem perdemos o nosso humanismo, fraternidade, hospitalidade, etc., tão próprias do nosso espírito latino…

Quando era autarca, poderia ter que tomar decisões discutíveis e subjetivas, mas optava sempre por aquelas que não me tirassem o sono próprio de uma consciência tranquila.

É uma pessoa rigorosa? – E diz sempre o que pensa? (se sim, foi algo que veio conquistando com o tempo ou simplesmente por uma questão de caráter) Procuro ser rigoroso e coerente comigo mesmo, assim como tolerante e respeitador da coerência dos outros. Quando era autarca, poderia ter que tomar decisões discutíveis e subjetivas, mas optava sempre por aquelas que não me tirassem o sono próprio de uma consciência tranquila. Só assim entendo que se possa exercer a cidadania, quer seja na política ativa ou nas múltiplas funções da sociedade civil.

Sente-se realizado? Pobre do Homem que não tenha ambições, por se sentir já totalmente realizado! Posso antes dizer, que de tudo o que já fiz sinto um balanço positivo. Mas, como a vida é dinâmica, nada é definitivo, e todos os dias se estivermos atentos, somos confrontados com novos desafios. É esta insatisfação coletiva que faz, afinal, desenvolver as comunidades.

É pai, já escreveu livros, também já deve ter plantado uma árvore. O que é que lhe falta fazer na vida? De facto, já escrevi alguns livros, tenho um filho economista, todos os anos no “dia da árvore” ajudei a plantar muitas (hoje, algumas delas já dão boas sombras!), no entanto, como cidadão, sinto que ainda tenho muitas tarefas comunitárias e pessoais em que gostaria de participar.

Isuvol
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