Por Telmo Monteiro
Há cerca de 10 anos, estando eu a arrumar umas molduras com antigas fotografias de família, reparei que, na parte de trás de uma dessas molduras se encontrava uma lista de nomes que não tinham qualquer relação com a fotografia emoldurada. Estranhando o facto, decidi abrir a velha moldura de madeira com pregos ferrugentos, na qual figurava uma fotografia do casamento dos meus avós em 1933. Foi dessa forma que descobri a existência de uma fotografia de 1893, mostrando o professor Maximino Fernandes Cid, vulgo Mestre Cid, com uma classe de alunos seus, de diversas idades, a quem lecionaria naquele ano na escola do Cartaxo.
Por sorte, a fotografia além da sua antiguidade, encontra-se documentada com a identificação de todos os alunos que nela surgem e contém dados que nos permitem saber a sua história enquanto objeto que sobreviveu até à atualidade.
Pelo logotipo que surge no passe-partout, ficamos a saber que se trata de uma cópia, revelada no “Arcade Studio” de J.D. Ferreira, na cidade de New Bedford, situada no estado norte-americano de Massachusetts. Facto que se explica por ter sido a cidade para onde, na década de 1920, emigrou Júlio Baptista Pêgo, umas das crianças presentes na fotografia, e onde viria a falecer em 1944.
Na parte de trás do passe-partout encontra-se escrito:
“Ao meu grande amigo e compadre e ex-sócio, Júlio Augusto Marques, venho hoje oferecer este grupo, para relembrar os dias da nossa mocidade.
Júlio Batista Pêgo,
1 de Fevereiro de 1938,
E.U. of America”
Trata-se portanto de um presente enviado dos Estados Unidos da América para o Cartaxo, tendo como destinatário outro dos alunos da fotografia, Júlio Augusto Marques, o qual teve depois o feliz cuidado de identificar, para a posteridade, cada uma daquelas crianças. Refira-se que o remetente terá levado a fotografia original consigo para aquele país, revelador da importância que a mesma representava para si.
No entanto, a história desta fotografia não termina aqui, em algum momento da década de 1950 ou 1960, um membro da minha família teve a infeliz ideia de desprezar por completo o valor documental e emocional de tão preciosa fotografia, reduzindo-a a um mero cartão que apenas serve para reforçar uma moldura, resultando que durante cerca de 60 anos aquela se manteve oculta, humildemente servindo de suporte à fotografia de um casamento.
Chegamos assim ao ponto em que o meu pequeno trabalho de arqueologia trouxe de novo à luz do dia aquele objeto que um dia atravessou o Oceano Atlântico e que me mostrou algo absolutamente surpreendente: ver o meu bisavô, Júlio Augusto Marques, ainda criança. Algo muito improvável se tivermos em conta que ele nasceu em 1880 e a fotografia antes do século XX era algo raro nesta região.
Após esse momento surgiram novos factos que permitem acrescentar mais um capítulo à história desta fotografia. Tendo eu participado no Projeto Memórias Fotográficas, um projeto dedicado a recolher, preservar e divulgar fotografias antigas, uma das várias iniciativas que tivemos foi a de editar uma coleção de 10 postais ilustrados com fotografias de pessoas do concelho, cada uma representativa de um tema emblemático.
A fotografia aqui apresentada foi escolhida para representar o tema “escola”. Ao participarmos numa edição da Feira dos Santos, na qual divulgávamos o Projeto aos visitantes do stand, recebemos a visita do Sr. Rogério Raposo, um filho da terra, que mostrou interesse em conhecer a coleção de postais.
Foi assim que, ao analisar as fotografias e os nomes, que na parte de trás identificavam as pessoas, se deparou com o postal referente à escola e subitamente encostou-o ao peito e exclamou emocionado “ai, que é o meu avô!”.
Após uma pausa para ver bem a fotografia, explicou a razão de tão inesperada reação: na lista constava o nome do seu avô, Damazo de Sousa Raposo, o qual não chegou a conhecer e, apesar de ter quase 70 anos, era a primeira vez que via o seu rosto, pois até aquela data nunca tinha conseguido encontrar uma fotografia onde ele figurasse.
Desde o dia em que um grupo de crianças, no meio das brincadeiras se organizou por ordem do professor, e se proporcionou o momento em que o fotógrafo disparou o flash, ao momento em que o neto de uma dessas crianças teve a felicidade de gritar “ai, que é o meu avô!”, decorreram 120 anos de acasos e coincidências felizes. Viva a memória colectiva!
Em baixo os nomes das pessoas identificadas, cujo número correspondente se encontra na foto.
1 – Maximino Fernandes Cid (Professor) (1858-1929)
2 – João Moreira da Costa (Ajudante)
3 – Damazo de Souza Rapozo
4 – José David
5 – Fernando José Fernandes
6 – João Nunes Pedreira
7 – José Franco
8 – Francisco José Vieira
9 – Duarte Luiz Inácio
10 – Joaquim Pedro d’Oliveira
11 – Domingos Guilherme Gomes
12 – António Bratríca (F.1918)
13 – Júlio Augusto Marques (1880-1950)
14 – João Jacinto Girão
15 – José Nunes Pedreira
16 – Júlio Baptista Pêgo (1882-1944)
17 – Joaquim Tagarro
18 – Joaquim Gonçalves
19 – Júlio Carlos de Almeida
20 – Manuel Rafael Moreira
21 – Francisco Augusto Pêgo
22 – João António Gomes
23 – António Baptista Pêgo
24 – Júlio Guilherme Gomes
25 – Alberto Reis
26 – Marcelino dos Santos
27 – Joaquim dos Santos
28 – Acácio dos Reis
29 – José Augusto Marques (1884-1964)
30 – Sabino Augusto Marques (1886-1963)