De umbigos à mostra

Opinião de Francisco Pereira

Em Agosto, dá gosto ver algumas dessas cicatrizes abdominais, símbolo primeiro da nossa autonomia, quando dizemos adeus ao útero materno. São lindos, principalmente num corpo de barriguinha plana e com o resto a condizer. Mas, se não houver mais nada para dizer do que mostrar os piercings, tatuagens, falar de apps e de caça aos pokémons (uma espécie gambozinos, capazes de render muito dinheiro aos seus criadores…), então que me desculpem as bonitinhas e os bonitinhos, mas ter pensamento próprio e estruturado é fundamental. E também tem a sua dose de sex appeal…

Provavelmente, serei um daqueles ruins espectadores que só vêem urtigas onde crescem flores, de que falava o poeta António Botto. Porém, quando vejo tantas pessoas tão embrenhadas nas redes sociais, a fazerem comentários e julgamentos tão apressados — que mais se assemelham a ejaculações precoces — fico cada vez mais convencido que ter tanta e tão torrencial informação, como a dos dias de hoje, não cria mais conhecimento, nem fomenta um verdadeiro espírito comunitário.

Prevalece a fuga à realidade, a superficialidade de análise, o egocentrismo, o imediatismo, a obsessão pela imagem e pelo espectáculo… Por exemplo, já repararam que, actualmente, boa parte das pessoas utiliza “espectacular” e “fantástico” para qualificar quase tudo (o fogo-de-artifício, o concerto, o(a) namorado(a), o atentado, o sismo, etc, etc.) como se na língua portuguesa não existissem muitos outros adjectivos mais apropriados para cada situação em causa?

Outro aspecto que me faz alguma impressão, é o da desresponsabilização da sociedade, das famílias, das pessoas. Queremos o Estado para nos garantir a defesa e segurança, a justiça, a saúde, a educação, a regulação da economia, etc. Talvez não precisemos que as autoridades nos venham dizer que devemos beber água se está calor, agasalhar se está frio, ter cuidado a atravessar a rua… se andarmos à caça de pokémons! Não estará implícita nestas atitudes uma certa “infantilização” dos adultos e uma desresponsabilização da sociedade?

Dado que os recursos disponíveis são sempre limitados, não correremos, assim, o risco de estar a desviar alguns do essencial para o acessório?

Mas, mais importante do que isso, importará reflectir sobre as consequências para a democracia de uma sociedade que idolatra demasiado os umbigos, se habitua a protestar, mas não se envolve o bastante na compreensão e na resolução dos problemas concretos. E o que temos visto pela Europa (mas não só) é o surgimento de impasses na governação e o enfraquecimento dos regimes democráticos, com forças radicais e populistas em ascensão.

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A par das reivindicações legítimas e do exercício das liberdades democráticas, seria certamente salutar pensarmos, também, que as comunidades onde nos inserimos e o país merecem, pelo menos, um pouco do nosso tempo e atenção. Os umbigos que mostramos no Verão podem ser interessantes, lindos até. Porém, os que exibimos durante todo o ano acabam por tornar-se enjoativos.

Pela milésima vez, valerá a pena citar uma conhecida frase de John Kennedy, um dos mais jovens e carismáticos presidentes dos EUA (de 1961 a 1963): “…Por isso, meus compatriotas, não perguntem o que o vosso país pode fazer por vocês — mas o que vocês podem fazer pelo vosso país.” (Discurso de posse, no Capitólio, Washington, em 20 de Janeiro de 1961)

* O autor não adota a ortografia vigente


 

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