Em Quinta-Feira de Ascensão até as folhinhas dão pão

Por Rogério Coito, historiador

Feriado nacional em muitos países. Feriado municipal no Cartaxo e em muitas terras do país. Uma evocação meio litúrgica em que a Igreja assinala a subida de Jesus aos céus e meio profana de louvor aos campos lembrando ritos pagãos para que os deuses favoreçam as colheitas.

Em muitos lugares começaram por fazer deste dia uma festa campestre, colhendo o ramo de espiga que se guarda de um ano para o outro atrás da porta da despensa, no simbolismo de que o pão nunca falte. Até meados do século passado o Cartaxo despovoava-se em carroças ornamentadas de verdura para merendar à beira Tejo, apanhar o ramo no campo ou fazer um pé de dança no baile popular do “Chalet” (no cruzamento para as Virtudes) onde as concertinas dos irmãos Forno espraiavam as suas melodias.

Mas nem sempre o feriado municipal do Cartaxo foi nesta data. Por volta de 1903, em tempos de monarquia, um grupo que se reunia amiúde na antiga farmácia Guedes do qual faziam parte António Narciso e Joaquim Calixto Guedes resolveu organizar nesse ano no 1º de Maio a 1ª Festa do Trabalho, com um desfile cívico pelas ruas do Cartaxo e para isso convocaram os artistas (artífices) que em pouco tempo fizeram e ornamentaram 33 carros alegóricos. A festa foi um êxito despertando a atenção da imprensa e tomou dimensão nacional passando a ser organizada de 2 em 2 anos. Vinha gente de muito lado e de Lisboa em comboios especiais para ver as ruas enfeitadas com flores de papel, iluminações “à moda do Minho”, toiradas, exposições, ouvir os discursos e ver o desfile. E em 1910 com a implantação da República, a primeira vereação republicana na Câmara Municipal propôs que o feriado municipal passasse a ser o dia 1º de Maio.

O 1º de Maio avança no entanto universalmente como Dia do Trabalhador lembrando os mártires de Chicago, Estados Unidos da América, que tinham sido perseguidos e mortos pela conquista das oito horas de trabalho. A Rússia tinha-se formado na União Soviética depois da revolução de Outubro de 1917 como país socialista e adoptado o dia para louvar as classes trabalhadoras. Mas em Portugal o Estado Novo tinha entrado em acção e não vê com bons olhos qualquer conotação política. Como quem governava na Câmara Municipal não era eleito, mas sim escolhido pelo governo, a pressão (imagina-se) foi no sentido do feriado ser mudado. E passou para a Quinta-Feira de Ascensão, um dia tão sacramentado que na gíria popular se diz até as folhinhas dão pão. A Feira de Maio, vestígios desse passado de louvor ao mundo do trabalho ainda voltou depois da liberdade trazida pelo 25 de Abril de 74. Mas os tempos eram outros. Sem fulgor, extinguiu-se. Como diz o poeta João Rui de Sousa: “Quase sempre as palavras serão sombras de puras coincidências, acidentes fortuitos, pedaços de papel caídos na berma dos passeios…Mas é por elas que se recortará o rosto do real”.

Foto: Operários construtores da mobília de quarto que participou no Cortejo do Trabalho do 1º de Maio de 1931, o último que se realizou depois de muitos interregnos, e que hoje se encontra a integrar o Museu de Miniaturas do Ateneu Artístico Cartaxense. Da esquerda para a direita: João Torres, João Monteiro, Manuel Sarmento, Júlio Agostinho, Francisco Cerco e Francisco Gomes Paixão. (colecção particular de Telmo Monteiro)

Rogério Coito escreve de acordo com a antiga ortografia

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Texto publicado na edição impressa nº 43 da Revista DADA

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