Ao longo de décadas sonhámos com uma Europa solidária, humanista, referência civilizacional do mundo. Uma Europa de cultura, de progresso, apostada na hegemonização do seu território, onde as assimetrias regionais seriam esbatidas e os melhores índices de desenvolvimento humano partilhados pelos seus membros. Era a reconstrução qualitativa de uma Europa flagelada por duas sangrentas guerras mas que, no após guerra, devido a líderes fortes que souberam priorizar os ideais europeus da paz, do desenvolvimento, da solidariedade e da liberdade, conseguiram incutir uma nova esperança no povo europeu.
Hoje, olhamos em redor e perante o vazio político de muitos dos atuais líderes, órfãos da herança de Monnet, Schuman e Adenaur e de outros grandes estadistas que se lhes seguiram, parece-nos que o sonho lindo poderá acabar sem honra e sem glória. Os princípios ideológicos da social-democracia e da democracia cristã, que marcaram o ADN ideológico da construção europeia, foram usurpados por ideologias neo liberais (algumas de assumida extrema direita) endeusadas aos todo-poderosos e especulativos mercados financeiros.
Bastou o “papão” ideológico fabricado das dívidas soberanas, a que se veio juntar a crise dos refugiados, para se tornar tudo mais claro, brutal e apagar qualquer réstia que ainda pudesse existir do sonho europeu. Ao contrário e sob a batuta germânica e dos seus aliados ideológicos, a Europa tornou-se cada vez menos o garante dos valores e dos princípios, traiçoeira e manipuladora para com os seus e, sobretudo, cada vez menos a Europa dos cidadãos hoje apenas devota do capitalismo financeiro e da insensibilidade social. Essencialmente, uma Europa que se tornou o exemplo da desumanidade, o facho da hipocrisia que finge não ver os crimes horrendos que acontecem bem em frente dos seus olhos. Uma Europa socialmente vazia, que assiste impávida à construção dentro dela de “novos muros” e coabita, sem pejo nem vergonha, com regimes de extrema-direita, mas que, por outro lado, se “preocupa muito” com o não cumprimento de décimas nos défices orçamentais dos países mais frágeis.
Não gostaríamos de ser pessimistas, mas uma Europa desumanizada, indiferente ao sofrimento e despida dos valores da solidariedade e da democracia, nunca poderá ser um lugar de cultura, de progresso e de referências civilizacionais. Constituirá, antes, um território egoísta, de mercadores, especuladores e de mercenários financeiros sem escrúpulos. Jamais a “Europa das luzes e da democracia” que nos prometeram!
Crónica publicada na edição de novembro do Jornal de Cá.