Fundo da garrafa

"Aqui há conto", por Helena Nunes

Mais um dia de visão turva, reflexos desfocados e sombras na parede que me iludem a mente.

A casa vazia de riso, mas inundada ainda pelo bálsamo do teu perfume em cada canto.

Nem a cama me é convidativa. Sei que nela vou apenas encontrar lençóis frios e uma almofada húmida pelas minhas lágrimas salgadas.

O chão foi novamente o meu companheiro de uma noite solitária. Mais uma, apenas mais uma.

Os ossos gelam em contacto com o piso frio e arrepios percorrem-me a pele eriçando-me os pelos. Sinto saudades do calor da tua boca no meu pescoço.

Ardem-me os olhos, fruto das noites mal dormidas e do choro inesgotável. Fios de cabelo ásperos e enrolados, pendem sobre a minha face, implorando por um banho.

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A partida

Promessas

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Dói-me cada músculo do corpo como se todas as noites fosse atirada para o ringue de boxe. Não sou, mas sinto que o meu coração o é. Espancado, maltratado, fustigado, esmurrado, derrotado.

Inspiro profundamente, procurando no ar algo que me acalente. O familiar odor de sumo de uva fermentado instala-se nas minhas narinas.

A garrafa jaz no chão, desprovida de cuidados, abandonada à sua sorte. O meu reflexo.

Enfeitiçado, o meu corpo arrasta-se no soalho até os meus dedos alcançarem o vidro escuro.

Aproximo o gargalo do meu nariz e inalo o aroma de frutos vermelhos e as notas florais que ainda se agarram às últimas gotas.

Verto o pouco líquido carmesim na boca e sinto o seu abraço doce envolver a minha língua. Oh, como desejo que fosse o sabor da tua boca a envolver a minha.

As gotas deslizam-me pela garganta e misturam-se com o gosto das lágrimas que assomam aos meus olhos.

Viro a garrafa e a última gota cai-me nos lábios, beijando-os demoradamente. Deixo que os percorra, tingindo-os de vermelho, e fecho os olhos recordando os teus beijos inebriantes.

Abro os olhos e nada mais resta. Nem vinho, nem tu, nem eu.

Deixo o meu corpo cair pesadamente no chão e começar a inundá-lo com choro. O mundo à minha volta começa a apagar-se.

A garrafa rodopia lentamente em frente dos meus olhos e julgo ver-te em cada reflexo e sombra que forma.

É apenas uma garrafa. Vazia. Como eu estou, desde que te perdi.

Vejo o fundo da garrafa. Mas não te vejo a ti.

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