Este é o terceiro e também o último texto que preparei no contexto dos abusos sexuais cometidos na Igreja católica. O primeiro, A tripla corda e a lista dos 407, é um texto de aritmética; o segundo, A boa resistência, é um texto mais teológico e pessoal. Agora, com este, sobre o cardeal George Pell, pretendo trazer-vos mais um preso para a Páscoa!
Escrevi-os por ser católico e por ser padre católico, e ter uma experiência muito diferente da Igreja e das comunidades cristãs, daquela que tem sido referida em muitos lugares comuns; e também por ser cidadão, ter opinião, e acreditar no direito e na justiça para todos. Publiquei-os no Jornal de Cá por achar que poderia ter alguma coisa a dizer sobre o assunto. Sinceramente, não sei se levei pedrada!
Agradeço ao Jornal de Cá a abertura e as gramas de coragem! Reconheço que não é fácil publicar coisas meio contra corrente! Mas sem essas publicações, as dos jornais nacionais e as dos jornais locais, não se consegue fazer uma opinião diferente sobre muitas coisas. Curiosamente, são os artigos de opinião que vão ajustando o percurso neste assunto dos abusos. Obrigado pela vossa atenção! Desejo-vos uma santa Páscoa!
- Desta vez, trago-vos um preso para a Páscoa, para fazer companhia ao Senhor Jesus. George Pell esteve preso mais tempo do que Jesus, mas foi com Ele que passou 404 dias, por crimes que não poderia ter cometido.
Pell entrou na diocese de Melbourne, na Austrália, em agosto de 1996, e, num dos domingos do advento, a 15 ou a 22 de dezembro daquele ano, ficou, como era seu costume, a cumprimentar as pessoas que saíam da missa, durante vinte ou trinta minutos. O arcebispo dirigiu-se, depois, à sacristia e desparamentou-se das vestes pontificais, junto de padres, cerimoniários, acólitos e sacristães.
Para se ter ideia da azáfama do que é a missa de Melbourne, basta ir ao youtube, neste ano de 2023, para ver a gente que aquilo envolve. Quão maior seria a multidão, na presença do bispo novo, vigoroso, carismático e popular! Pell era mesmo muito conhecido! O autor, colunista, polemista, empreendedor, presidente da Cáritas internacional, reitor do seminário, reitor da U. Católica, não passava despercebido.
Foi o autor e o promotor do primeiro protocolo católico de proteção de menores na Igreja católica, o Melbourne Response, em outubro de 1996. Recebeu a Order of Australia, a Centenary Medal, e a Queen’s Birthday Honour, pelos serviços prestados ao país. Foi feito arcebispo de Sidney em 2001 e terá sido das poucas pessoas a enraivecer o Richard Dawkins num debate transmitido em direto, em 2015! Era livre, audacioso, brilhante, e nada modesto!!
O papa Francisco veio busca-lo para Prefeito do Secretariado de Economia da Santa Sé, em 2014.
Durante dias, semanas, e meses, de 2017, todos as tv’s, jornais e plataformas reportadas à ABC, televisão australiana estatal, noticiaram escândalos sexuais de Pell, ocorridos em 1970 e em 1996. A mediatização foi de tal forma que a polícia de Victoria iniciou uma investigação judicial, sem qualquer queixa da parte das supostas vítimas.
Os processos deram origem ao Swimmers trial que decorreu em simultâneo ao Cathedral trial, com a acusação de que Pell abusara de dois jovens quando os atirava ao ar, e para a piscina, em Balarat, no ano de 1970, e abusara e violara dois coristas, na sacristia da catedral de Melbourne, depois da missa solene, em 1996. Os advogados deixaram cair o processo Swimmers.
O júri decidiu que havia mais do que a dúvida razoável, no Cathedral trial, para afirmar que o arcebispo de Melbourne, recém-instalado em agosto de 1996, abusou e violou dois meninos do coro, durante seis minutos, miúdos que não conhecia, na sacristia da catedral, dez minutos depois da celebração solene do advento, no domingo 15 ou 22 de dezembro de 1996. Pell foi condenado a 6 anos de prisão em dezembro de 2018.
O cardeal apelou para o Suprem Court of Victoria, que acabou por confirmar a sentença com dois juízes a favor e um contra. Os juízes deram razoabilidade ao testemunho de uma vítima, apesar da improbabilidade aferida por fiéis, padres, cerimoniários, acólitos, sacristães, maestros de coro, etc. O agora suspenso Prefeito da Secretaria de Economia, era preso em março de 2019.
O preso Pell lutou pelo apelo ao Hight Court of Australia e foi ouvido pelos sete juízes do Supremo que por, unanimidade, 7-0, confirmaram a posição do juiz que se opôs no tribunal anterior. Todos afirmaram que não havia mais do que a dúvida razoável, acrescentando a improbabilidade do fato e a forte possibilidade de se ter condenado um inocente. Pell foi libertado a 7 de abril de 2020.
Telegraficamente: esteve preso 404 dias; recebeu 4000 cartas; comungou semanalmente; escreveu 3 diários da prisão. O papa referiu-se à sua inocência 6 vezes que tivesse ouvido; 27 companhias de media foram acusadas e 12 condenadas a pagar milhões de dólares, penso que em janeiro de 2022.
Pell morreu a 10 de janeiro de 2023 com 81 anos, em Roma, e foi sepultado na catedral de Sidney a 2 de fevereiro de 2023. Foi saudado pelos antigos primeiro-ministro John Howard e Anthony Abbott, que, no elogio fúnebre, disse que “se o arcebispo tivesse morrido na prisão, nunca se conheceria a decisão do Supremo Tribunal”. Vale muito a pena ouvir a homilia do arcebispo Fisher.
Os contornos são enormes e não dão tempo, mas, ainda hoje, metade da população pensa que o Caso Pell foi o maior erro judicial da Austrália e a outra metade continua a gritar “George Pell go to hell”.
- Permitam-me uma última palavra sobre os abusos sexuais na Igreja católica. O relatório Strecht começa a ser contestado por vários membros da sociedade civil, académicos, juristas, médicos, jornalistas, padres, como referi em cima. No Observador, a 1 de abril de 2023, a médica psiquiatra Maria Lúcia Soares escreveu:
“Não podemos negar os erros metodológicos, a exposição exagerada e chocante de histórias concretas de vítimas que desconhecemos se autorizaram a sua divulgação (para quê? que acrescentou? (…), os muito poucos testemunhos presenciais, por oposição aos muitos inquéritos online anónimos. E sobretudo, a afirmação da lista dos mais de cem abusadores no ativo que já se provou ter sido um grande engano. E que temo possa servir para descredibilizar totalmente o trabalho da Comissão. O que seria um grande prejuízo para todos, mas principalmente para as vítimas e para a Igreja que encomendou e pagou este labor de mais de um ano de toda uma equipa, liderada por Pedro Strecht, pedopsiquiatra competente, respeitado e dedicado. (Se fosse hoje, pergunto-me se ele escolheria os mesmos colaboradores (…)”.
Na Carta de Intenções, de 2 de dezembro de 2021, Pedro Strecht apresentou uma Comissão autónoma, independente, multidisciplinar e paritária, que pretendia dar confiança a todos quantos pudessem ter sofrido abusos da parte do clero. O seu maior desígnio era o de alcançar, ajudar e recuperar as vítimas:
“Mais do que alcançar números, algoritmos ou dados percentuais, procuramos chegar a pessoas e sendo essa uma mais que possível dificuldade será, com certeza, a mais esperada e justa recompensa para todos os que vão trabalhar nesta equipa”.
Na Apresentação da Comissão Independente, a 10 de janeiro de 2022, Pedro Strecht empenha a vasta experiência profissional para dar confiança às vítimas, garantindo um trabalho dedicado e sério, com necessário recato para transmitir confiança.
Strecht desapareceu. A lista dos 407 indivíduos tornou-se a lista dos 100 mais ou menos ativos. Da lista dos 54 testemunhos validados em Braga, os bispos reuniram “algumas” vítimas (3, segundo a Tabela de Equivalências do Relatório); dos 9 validados em Santarém, identifica-se 1; dos 42 do Porto, localizam-se 0. (Está no relatório, e pode ser verificado por quem o queira, nas páginas 383-385).
Estes versus, por exemplo, serem tantos vs aparecerem tão poucos, dá que pensar.
O Comunicado – resposta do bispo do Porto, à Carta dos 400 católicos, a 31 de março de 2023, manifesta a estranheza disto tudo:
“O bispo não sabe o nome das vítimas. Daí a investigação a que procedeu e continua a realizar. Mas se os subscritores conhecem as vítimas, em consciência devem indicá-las ao bispo”.
Pedro Strecht não apertou o grupo de controlo, na especificação dos formulários e na localização das descrições. Empenhou, com justiça, a seriedade de todo o seu grupo para obter resultados sérios, mas a credibilidade colocada ao serviço das vítimas, não parece ter passado pela ferrugem do tempo. Talvez, por isso, ninguém saiba quem são as supostas vítimas, mas toda a gente sabe quem são os supostos abusadores.
Foi pena. Poderia ter sido um trabalho justo para todos e não o foi para ninguém. Tenho, honestamente, de dizer que foi uma pena.
Nos próximos meses teremos dados mais concretos para fazermos a listagem das vítimas identificadas por diocese. Ainda é muito cedo para a fazermos, mas penso que será possível fazê-la.
Como no Caso Pell, do Maior erro judicial ao “George Pell go to hell”, também em Portugal, nos próximos anos, metade das pessoas vai ficar com dúvidas e a outra metade vai continuar a acreditar no relatório religiosamente. As duas posições são legítimas.
Obrigado pela atenção destas semanas!