Há maiorias que custam mais a engolir que cinquenta ovos cozidos

Opinião de Pedro Mesquita Lopes

Num filme de 1967 com o Paul Newman, em que além da personagem comer cinquenta ovos cozidos numa hora para ganhar uma aposta e passar uma boa parte da história a fugir e a ser recapturado pelos guardas da colónia penal onde está, um dos maus da fita tem uma frase que ficou na história do cinema e da cultura popular (americana, mas não só) – fui ao Google e diz que é 11.ª citação mais importante do cinema americano (se querem saber, a primeira é: “Sinceramente, minha querida, não quero saber disso para nada.”) –, “What we’ve got here is failure to communicate.” – O que nós temos aqui é uma falha de comunicação.

E temos. Não temos só uma falha de comunicação, temos falhas de muitas mais coisas, mas também temos enormes falhas de comunicação.

Ou, pelo menos, às vezes, temos de acreditar que sim, que o que estamos a ouvir ou a ler não era bem aquilo que alguém queria dizer ou escrever, que houve uma falha de comunicação, que houve alguma coisa que falhou na transmissão ou na recepção ou até na formação do discurso que possibilita que alguém defenda o indefensável, que justifique o injustificável, que sustente o insustentável. Houve, a dado passo, mas não necessariamente no momento da concretização do discurso, uma falha de comunicação entre qualquer coisa, entre quem escreve e quem lê, entre quem diz e quem ouve, entre sinapses, entre hemisférios cerebrais, entre o tico e o teco, entre o nada e o lugar nenhum (mas estes já são casos extremos, não quero citar nomes, nem apontar ninguém em concreto, mas estou a pensar em várias personagens que peroram nas televisões a favor do Putin).

Na realidade, mais vezes do que seria desejável ou estatisticamente possível, a desculpa de que pode ter havido uma falha de comunicação é o nosso último refúgio ou o nosso derradeiro conforto, é a única forma de explicar o inexplicável. Por exemplo, um dia destes, uma pessoa com responsabilidades político-partidárias no Cartaxo desancou os Cartaxeiros, rotulando a maioria de nós como desleixados e azedos. Ora, como imagino que ela é de uma esmerada e doce minoria e que não houve desleixo na escolha das suas palavras, nem azedume contra os seus concidadãos, então a única explicação é que estamos na presença de uma falha de comunicação, pois, com toda a certeza, a senhora não acha que todos os Cartaxeiros – todos não, desculpem, uma “grande maioria” (46,58%, será?) – são desleixados e azedos. Não acha. Não pode.

*Artigo publicado na edição de junho do Jornal de Cá.

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