Memórias do Cartaxo, por Telmo Monteiro
Todas as pessoas que circulam pelas ruas do Cartaxo e Vila Chã de Ourique, com exceção das novas urbanizações, cruzam-se com a sua obra. Muitas pessoas em todo o Concelho vivem nas casas projetadas e construídas por ele, desenvolvem os seus negócios nas lojas que ele idealizou, estudaram nas escolas que ele construiu, passeiam nas ruas que ele projetou.
A Arte Nova é um motivo de vaidade para os cartaxeiros, quem visita o Cartaxo fotografa com admiração os exemplares deste estilo arquitetónico, muitos edifícios continuam vaidosos e de boa saúde, outros pela força do destino entraram em decadência. Ironicamente, são raros os cartaxeiros que sabem quem foi o responsável por todas estas obras, muito menos sabem que foi uma só pessoa.
A obra de Júlio Augusto Marques para a história do Concelho do Cartaxo é fundamental. Enquanto Mestre de Obras/Construtor Civil projetou e edificou grande parte dos edifícios ainda hoje existentes no centro histórico da cidade do Cartaxo, projetou e dinamizou a construção das Avenidas João de Deus e Mestre Cid, edificou a maioria das casas nas ruas centrais do Casal do Ouro tendo contribuído de forma decisiva para o desenvolvimento e transformação desta pequena localidade na atual Vila Chã de Ourique, projetou e/ou construiu diversas Escolas Primárias nas várias freguesias e localidades, assim como adegas, quintas, lojas, armazéns, empresas, fontanários, sedes de Associações, etc. De referir que os edifícios que projetou, tinham o seu cunho pessoal, tendo passado por diversos estilos como a Arte Nova, onde a quase totalidade dos edifícios do Concelho neste estilo são de sua autoria, ou a Art Déco.
Além do papel fundamental que granjeou na área da construção civil, desempenharia também um papel muito ativo e de grande importância em diversas outras áreas da sociedade cartaxense:
– Empresarial, onde fundou 2 empresas que complementavam a sua profissão ligada à construção civil, empregando dezenas de pessoas;
– Política, onde desempenhou funções de Vereador e Vice-Presidente na Câmara Municipal do Cartaxo;
– Cultural, tendo feito parte por diversas vezes das Direções do Grémio Artístico Cartaxense e da Sociedade Filarmónica Cartaxense, tendo ainda fundado e construído um dos primeiros animatógrafos do Cartaxo.
Júlio Augusto Marques nasceu no Cartaxo em 19 de março de 1880, primogénito de Sérgio Augusto Marques (1859-1921) e de Emília da Conceição Ramalho (1859-1892).
Aluno do Mestre Cid na infância, aprendeu inicialmente o ofício de carpinteiro (1896) e mais tarde aventurou-se na construção civil, tendo iniciado uma carreira de Mestre de Obras por volta dos 20 anos, profissões que desempenharia no Concelho do Cartaxo até ao fim da vida.
Inspirando-se em revistas francesas e livros de arquitetura, embora tenha tido os seus mentores nessa área (José da Silva Coelho c.1867-1917), terá desenvolvido a sua obra sobretudo como autodidata, aventurando-se como pioneiro no estilo Arte Nova, inédito no Cartaxo. A julgar pelo número de exemplares do início do Século XX ainda existentes, depreende-se que apesar da sua juventude, rapidamente conquistou a confiança dos cartaxeiros, que lhe encomendavam a construção das suas casas ou a ampliação das mesmas, confiança essa que rapidamente se espalhou ao resto do Concelho e até fora deste, visto que hoje em dia também se podem encontrar muitos exemplares no Vale de Santarém, Azambuja ou Aveiras de Cima, e alguns em Santarém, Salvaterra de Magos ou Benavente. Mais tarde o seu prestígio levou-o a receber encomendas de lugares mais distantes como o Cadaval, Bombarral, Coruche ou mesmo Lisboa.
Embora exercesse a profissão há quase 20 anos, apenas em 1919 se tornou Construtor Civil Diplomado, sendo sócio da Associação dos Construtores Civis e Mestres de Obras de Lisboa. Também em 1919 fundou com outro sócio a empresa de construção civil “A Edificadora”, situada na Rua José Ribeiro da Costa e em 1926 a empresa de serração e construção civil “A Construtora” na Rua da Boavista. Encarregava-se de diversas obras ao mesmo tempo, tendo muitos empregados sob a sua orientação, tanto na construção como nas empresas, que entre outras atividades, produziam as portas, janelas e os diversos complementos para os edifícios em construção.
“Republicano Democrático”, como se autodenominava, esteve envolvido na luta pelo derrube da monarquia, entre outros, ao lado do escritor Amílcar Ramada Curto. Teve problemas com as autoridades durante a presidência de Sidónio Pais em 1918 e seria preso junto com o pai e mais alguns cartaxeiros, por alguns dias, em janeiro de 1919 por ocasião da “Monarquia do Norte”. No mesmo ano foi eleito vereador da Câmara Municipal do Cartaxo, tendo nos anos seguintes desempenhado funções de Vice-Presidente da Câmara durante a presidência de António Mesquita (1920-1923).
Da sua presença na Câmara Municipal do Cartaxo, destaca-se o seu projeto e construção das “Avenidas Novas” do Cartaxo, mais tarde a Avenida João de Deus e a Avenida Mestre Cid, um exemplo de modernidade para época e que expandia urbanisticamente a vila. No seu diário refere que por diversas vezes desempenhou a função de Administrador do Concelho por ocasião dos presidentes se demitirem.
Foi ainda um dos maiores responsáveis por se erguer no Cartaxo o Monumento aos Mortos da Grande Guerra em 29.10.1922, não só como membro da Câmara Municipal, mas também como organizador e dinamizador de diversas festas de angariação de fundos para que o Cartaxo pudesse ostentar tal monumento.
A nível cultural, como foi mencionado acima, desempenhou por diversas vezes funções diretivas no Grémio Artístico Cartaxense (atual Ateneu) e na Sociedade Filarmónica Cartaxense, tendo sido ao longo da vida, no âmbito dessas coletividades ou a título individual, dinamizador e organizador dos diversos Cortejos do 1º de Maio para os quais projetou e construiu diversos carros alegóricos, Festas das Flores, Paradas Agrícolas, Feira dos Santos, festas de angariação de fundos de apoio aos feridos da 1ª Guerra Mundial, etc. É possível também encontrar atualmente alguns dos seus trabalhos em carpintaria no Museu das Miniaturas do Ateneu Artístico Cartaxense.
Fundou ainda um dos primeiros cinemas (animatógrafos) do Cartaxo, que funcionava numas instalações precárias no terreno onde em 1947 seria erguido o Cine-Ribatejo (atual Centro Cultural do Cartaxo).
Faleceu no Cartaxo a 28 de novembro de 1950, tendo deixado viúva Adelaide de Froes Marques e 6 filhos.
Obra
Embora seja um projeto inacabado e praticamente impossível, o de descobrir todos os edifícios que Júlio Marques projetou e/ou construiu, aqui fica uma lista de alguns dos edifícios mais emblemáticos que se sabe terem tido a sua intervenção. Nos casos em que não é referido, significa que o projeto do edifício é da sua autoria. Utilizo por vezes o nome das lojas que existem/existiram nos edifícios para mais fácil identificação.
CARTAXO
Rua Batalhoz
Drogaria Guedes | Casa Leitão | Casa da Fortuna | Ourivesaria Monteiro 2 | Loja Século XVII | Loja de Ernesto Baptista Piedade (nº 39) | Pastelaria Aromas (nº 41) | Adega Cooperativa do Cartaxo | Armazém e casa de habitação (nº 66) | Casa de habitação própria (nº 54) | Armazém e casa de habitação (nº 66) | Antiga loja CTX (nº 18) | Loja Rotel (Rocha & Teixeira, Lda) (nº 16) | Casa de habitação (nº 78) | “Bairro Paixão”
Rua José Ribeiro da Costa, Rua Dr. Júlio Montez, Rua da República, Rua Mouzinho de Albuquerque
Sede da Edificadora (antiga sede da Sociedade Filarmónica Cartaxense) | Antigo Centro de Saúde do Cartaxo | Casa de habitação (nº 13) (em frente ao beco Dr. Júlio Montez) | Farmácia Correia dos Santos | Edifício da antiga Caixa Geral de Depósitos (Construção sob Projeto do Arq. João Simões)
Praça 15 de Dezembro, Rua 5 de Outubro, Rua Dr. Manuel Gomes da Silva, Rua dos Combatentes do Ultramar
Antigo Edifício do Café Monumental e Ateneu Artístico Cartaxense | Café Vanália | Armazéns e casa de habitação “Vinhos Machado” | Antigo Cine-Ribatejo | Mercado Municipal do Cartaxo (Participou na construção sob projeto do Arq. João Simões) | Edifício do “Ferro de Engomar” | Edifício do Grémio Artístico Cartaxense
Avenida Mestre Cid, Avenida João de Deus
Casa de Joaquim Jacinto Ferreira e antigo Jardim de Infância do Cartaxo | Intermarché (antigo armazém de vinhos Joaquim Jacinto Ferreira) | Casa e Armazém de Vinhos de Alfredo Leal) | Casa de habitação ao lado do Cartório Notarial | Escola Primária do Centro (Ampliação de obra anterior da autoria do Arq. Adães Bermudes)
Rua Serpa Pinto, Rua Lopes Baptista
Edifício do Novo Banco | Edifício do Millennium BCP | Casa de habitação de José Maria Nicolau | Antigo Quartel dos Bombeiros | Sede do Sport Lisboa e Cartaxo
VILA CHÃ DE OURIQUE
Rua Mariano de Carvalho
Armazéns e Lagares de Francisco Ribeiro (todo o quarteirão até à Rua dos Combatentes) | Casa de habitação e loja (nº 95) | Talho e Salsicharia de António Claudino | Casa de habitação e loja (nº 107) | Casa de habitação (nº 108) (do lado esquerdo do Monumento à Batalha de Ourique) | Casa de habitação (nº 114) | Casa de habitação (nº 133) | Quinta e armazéns “Casa 1927” | Casa de habitação (nº 140) | Casa de habitação (nº 142) | Casa de habitação (nº 159)
Rua Gen. Vitoriano José César, Rua António Francisco Ribeiro Ferreira
Casa de Habitação (nº 1) (Entroncamento com Rua Mariano de Carvalho) | Antiga Sede da Sociedade Recreativa Ouriquense (nº 21) | Escola Primária (apenas construção)
Quinta da Fonte Bela
Ampliação da construção anterior para cerca do dobro da área
VALADA, PORTO DE MUGE
Escola Primária (apenas construção) | Quinta da Marchanta
PONTÉVEL, CRUZ DO CAMPO
Escola Primária (Projeto e construção) | Antiga Junta de Freguesia | Casa de habitação no entroncamento com a Rua Azevedo Coutinho (Junto ao Rio da Fonte) | Antiga Fábrica de Cerâmica Minerva (Cruz do Campo)
VALE DA PINTA
Antiga Escola Primária (apenas construção)
Muitos outros edifícios e construções de diversas naturezas e finalidades, que não couberam nesta lista, foram projetados e construídos por Júlio Augusto Marques no Concelho do Cartaxo, mas também fora deste. Infelizmente, após a sua morte, como tantas vezes acontece, o seu nome ficou esquecido na memória dos cartaxeiros, facto esse que dificulta a pesquisa e o estudo da sua obra, não esquecendo os inúmeros documentos e informações que se perderam com o trágico incêndio da Câmara Municipal do Cartaxo em 1970. Por outro lado, um valioso espólio da sua obra sobreviveu através dos herdeiros. São centenas de plantas arquitetónicas que nos permitem estudar, avaliar e comprovar a enorme dimensão do seu trabalho na edificação do concelho do Cartaxo na primeira metade do século XX.
Plantas do espólio de Júlio Augusto Marques, cedidas para digitalização por Maria Eulália Marques