Helder Travado, professor, foi o homem que a seguir ao 25 de Abril conduziu os destinos do Município e preparou as primeiras eleições democráticas no concelho. Aos 86 anos afirma-se comunista e passa os dias, tranquilo, entre a horta e pomar
Esta é uma entrevista que podia encher toda uma edição de um jornal. Hélder Travado presidiu à Comissão Administrativa do Concelho, que a seguir ao 25 de Abril preparou o caminho para as primeiras eleições democráticas, é um homem com uma vivência riquíssima e é um contador de histórias com um estilo próprio, eloquente, bem-humorado e didático. Viajou pelo mundo, viveu e trabalhou em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde e foi de topógrafo a professor depois de, aos 40 anos de idade, se licenciar em Geografia para cumprir um sonho de sempre: lecionar. Pelo meio ainda teve tempo para ser vereador na Câmara Municipal, militante comunista e trabalhar muito para criar os três filhos e dar-lhes condições para estudar.
É um homem de Abril?
Já era quando nasci. Desde muito jovem que tive uma propensão para defender a liberdade e os direitos das pessoas a uma certa informação. Quando fui para Lisboa, em 1968, convivi com muitas pessoas com esses ideais. Ainda existia o República e ainda lá publiquei uns contos.
Começou muito novo a trabalhar como topógrafo…
No serviço militar fui para Moçambique, em 54, estive lá 14 anos nos Serviços Geográficos e Cadastrais. Era uma coisa boa, passavam-se seis meses na sede e seis meses no campo. Fiz lá o curso. Dava instrução militar durante o dia e, durante dois anos estudei à noite. Ao fim de uns tempos fui destacado para Porto Amélia. Lá trabalhava-se muito mas gostei muito. Trabalhávamos seis meses no mato, mas lá os dias eram estupendos e nós só quando começava a época das chuvas é que regressávamos à sede.
Desde muito jovem que tive uma propensão para defender a liberdade e os direitos das pessoas a uma certa informação
Porque veio embora?
Começaram a surgir os movimentos de independência e havia solicitações para que lhes fizéssemos frente. Eu tinha conhecimentos com pessoas desses movimentos e senti que aquilo não era para mim, andar a fazer milícias e a combater contra o que eu intimamente achava justo. Em maio de 68 regressei a Portugal, reingressei no serviço militar e fui para o Serviço Cartográfico do Exército.
Nessa época já não dava aulas?
Não, mas esse era o meu sonho. Foi-me dada a possibilidade de estudar enquanto trabalhava. Era uma luta, sair do serviço e ir para a faculdade. Mas lá fiz o curso. A minha primeira colocação foi no Liceu Padre António Vieira. Depois pedi transferência para Santarém e quando aconteceu o 25 de Abril estava colocado em Alpiarça a dar início à Escola Secundária.
Antes do 25 de Abril tinha vida politica?
Não, mas tinha muitas preocupações de ordem social, já percebia como os povos eram explorados pelo imperialismo.
Sabia que o 25 de Abril ia acontecer?
Não. Não suspeitava de nada. Em África já tinha ouvido falar na possibilidade de haver um golpe mas não passava de coisas vagas. Já em Portugal estive no início dos anos 70 num congresso de oposição, em Aveiro, mas propriamente o 25 de Abril apanhou-me de surpresa.
A sociedade tinha sempre medo da denúncia, falava-se sempre baixo, mas havia oposição. Maioritariamente havia um sentimento de esquerda.
Como viveu o dia?
Bem, fui avisado durante a noite que estava a haver um golpe militar, mas eu fui dar aulas na mesma. Quando passei em Santarém havia militares a distribuir panfletos a informar o que se estava a passar. Parei e levei logo uns quantos para distribuir na escola em Alpiarça. Mas isto tudo sem saber muito bem para que lado é que as coisas iam cair. Até se falou inicialmente que podia ser um golpe de direita.
No Cartaxo havia consciência politica?
Enfim, a sociedade tinha sempre medo da denúncia, falava-se sempre baixo, mas havia oposição. Maioritariamente havia um sentimento de esquerda.
Como chegou à Câmara?
Isso foi uma situação muito aborrecida. O presidente da Câmara era um homem que tinha muito valor, o senhor Neves, porque tinha sido operário, tinha ido para Lisboa, lá se formou e quando regressou substituiu o Carlos Reis na Câmara. Quando foi o 25 de Abril, tudo o que era do antigo regime tinha de sair. Houve então um plenário na Sociedade Filarmónica, onde esteve o Manuel Alegre, onde se decidiu que era preciso alguém para presidir à Comissão Administrativa. Foi aí que surgiu o meu nome. Fui chamado à Junta de Salvação Nacional, em Santarém e fui indigitado.
Mas porque diz que foi uma situação aborrecida?
Porque tive de chegar à Câmara com a missão de informar o presidente de que iria ser substituído. E isso incomodou-me. Depois houve a situação ingrata de substituir gente que lá havia e que era dada como informadora da PIDE ou ligada ao regime.
Foi nesse tempo que se prepararam as primeiras eleições democráticas.
Foi… isso foi uma trabalheira que nem se imagina. Os cadernos eleitorais não existiam. Davam vontade de rir, tinham 400 ou 500 inscritos e esse foi o maior trabalho desses dois anos. Fizemos o recenseamento eleitoral a sério e preparou-se o caminho para as eleições democráticas. Também passava dias a receber pessoas que vinham reivindicar coisas. Toda a gente queria estradas, esgotos, tudo o que não havia e que era preciso fazer logo. Toda a gente queria alcatroar as estradas de um dia para o outro, mas não havia dinheiro para nada. Mas o trabalho fundamental foi preparar os três atos eleitorais.
Quando foi o 25 de Abril, tudo o que era do antigo regime tinha de sair. Houve então um plenário na Sociedade Filarmónica, onde esteve o Manuel Alegre, onde se decidiu que era preciso alguém para presidir à Comissão Administrativa. Foi aí que surgiu o meu nome. Fui chamado à Junta de Salvação Nacional, em Santarém e fui indigitado.
O dia 25 de Abril foi o mais marcante da sua vida? Como o vê hoje?
Foi importante mas vejo como mais um feriado. O 25 de abril foi torpedeado de todas as maneiras e feitios. A direita começou a ganhar força e hoje o 25 de Abril é mais uma data de recordação que outra coisa. Tudo o que o MFA quis fazer foi eliminado.
Mas o país mudou. Hoje há liberdade?
Isso mudou, hoje há liberdade para chamar nomes a toda a gente. Não é o que sonhámos. Sonhámos em transformar a sociedade e torná-la mais igualitária, mais justa, mais compreensiva. Isso foi deturpado, o poder económico começou a dar as suas ordens e chegámos ao que se vê hoje.
Depois da experiência na Câmara foi cooperante em Angola?
Fui, fui o cooperante número um em Angola. Quando lá cheguei ainda nem sabiam muito bem o que me haviam de fazer. Fui mandado para lá no dia 1 de novembro de 1979. Até disse logo que não me dava jeito nenhum que era a Feira dos Santos e então mudaram a data e fui no dia 11. (risos) Foi uma experiência maravilhosa. Toda a gente se queria inscrever. Queriam aprender, queriam estudar. Também me motivou de uma maneira extraordinária porque senti que estava verdadeiramente a contribuir para a melhoria do novo país.
Quando regressa envolve-se na política autárquica…
Os camaradas do Partido Comunista pressionaram-me para me candidatar. Fui vereador ainda no tempo do dr. Renato Campos que me chamou para eu ficar a meio tempo. Ainda estive mais um mandato. Mas voltei a ser candidato já quando o Conde Rodrigues foi eleito.
Hoje há liberdade para chamar nomes a toda a gente. Não é o que sonhámos. Sonhámos em transformar a sociedade e torná-la mais igualitária, mais justa, mais compreensiva. Isso foi deturpado, o poder económico começou a dar as suas ordens e chegámos ao que se vê hoje.
Porque é que o PC nunca ganhou eleições aqui no Cartaxo?
Porque está tudo feito para o PS ganhar. A direita nunca teve grande apoio no concelho. E o Partido Comunista está marcado para nunca ganhar nada. Está aromatizado. São todos uns malandros que comem criancinhas, que nunca podem ganhar nada. É por isso que nunca ganha. E também Portugal tem ligações na Europa, pactos, que não permitem grandes fantasias.
Como é hoje o seu dia a dia?
Farto-me de trabalhar. Nunca trabalhei tanto como depois de estar reformado. Planto couves e alfaces, uma coisa que nem muita gente sabe fazer. Trato das minhas árvores de fruto. Tenho árvores de todas as espécies. Depois alimento os meus animais. É-se muito feliz quando se vive assim, é preciso é saber. Depois almoço e seguir deito-me e leio um bocadinho. Leio todos os dias e faço a minha sesta. Sem ler e sem a minha sesta não posso viver. Lá para as quatro da tarde vou para o escritório. Faço recortes dos jornais para o meu arquivo. Tenho um arquivo tremendo sobre assuntos da atualidade sobretudo por causa das distorções e das manipulações. Depois disto, o meu dia é só diversão. Janto, vejo duas novelas brasileiras, que são muito bem escritas e representadas, muito melhor que as nossas e vejo bocadinhos de notícias. Um pouco antes da meia-noite vou para a cama mas antes de adormecer ainda vejo as últimas notícias.
Farto-me de trabalhar. Nunca trabalhei tanto como depois de estar reformado. Planto couves e alfaces, uma coisa que nem muita gente sabe fazer. Trato das minhas árvores de fruto. Tenho árvores de todas as espécies. Depois alimento os meus animais. É-se muito feliz quando se vive assim, é preciso é saber.
Gostou da homenagem que recebeu o ano passado?
A medalha de mérito? Gostei. Mas há coisas que eu relativizo muito. Fiquei satisfeito porque acho que fiz alguma coisa de útil na Câmara quanto, mais não fosse ter colaborado na implantação da democracia e procurado fazer o melhor no período que lá estive. Talvez a melhor recompensa que possamos ter é o reconhecimento dos nossos conterrâneos. Se quer saber o melhor prémio que tive foi-me dado há tempos por um senhor que me disse: – sabe, você é um homem com sorte porque eu de si nunca ouvi dizer mal. Considerei isto um prémio muito confortável sobre tudo o que fiz na Câmara.
Como vê a situação atual no Cartaxo?
Muito mal. Está complicada. Vejo com alguma distância. Por isso é que não gosto desta política que se faz agora. É só intrigas, passam a vida a digladiar-se. Acho que não faz sentido, não vale a pena. Gosto deste moço que lá está e acho que ele tenta fazer o seu melhor, mas nem sempre tem a compreensão das pessoas. É que impera este espírito que temos que estar sempre contra, e isso é um contrassenso.