Opinião de Elvira Tristão
Por estes dias celebrámos o 25 de abril. O povo habituou-se a associar o 25 de abril ao valor da liberdade. Habituados que estamos a simplificar processos complexos – por vezes mesmo de modo redutor –, passamos a chamar ao 25 de abril o dia da liberdade. E nesta simplificação, fica diluído o conceito de democracia. Tomamo-la como um dado adquirido, condição sine qua non para que haja liberdade. Contudo, sabemos hoje que as democracias imperfeitas – como se não o fossem todas! – são campo fértil para o recrudescimento de movimentos extremistas que se alimentam dos insatisfeitos, dos desiludidos e dos ressentidos.
Paradoxalmente, temos sociedades cada vez mais plurais e multiculturais onde cada um reivindica os seus direitos, mas habituámo-nos a ver o mundo dividido entre nós e os outros. Quanto mais diferentes nos assumimos, menos toleramos a diferença do outro. Na Assembleia da República e nos meios político-partidários, a discussão de ideias diferentes é tolerada como se de uma encenação se tratasse ou é vista como um anátema. Como se o problema da democracia fosse a própria discussão sobre diferentes ideais sociais e estratégias para os alcançar. Não é.
E essa atitude de repúdio pelo dissenso tem levado a que nas diferentes instâncias do nosso coletivo sejamos forçados (intrínseca ou extrinsecamente) a calar a discordância ou a acatar em vez de propor ou contrapropor outras soluções para problemas que são de todos. Passámos a andar com o credo da unanimidade na boca e o dogma da uniformidade para cuidar do que é único e por natureza desigual.
Aos poucos fomos deixando que vingassem os ideais das lideranças unipessoais, dos CEO, o culto dos presidentes e o “rosto” das instituições. Assim, paulatinamente fomos trocando o colegial pelo individual e o bem comum pelas liberdades individuais, sem assegurarmos o equilíbrio de três pilares essenciais para as democracias liberais: liberdade, igualdade e fraternidade (atualizado para solidariedade). A demonstração disto tem sido o aumento da desigualdade na redistribuição da riqueza.
Vem esta conversa a propósito da ideia que defendo de que, para lá de cantarmos “liberdade”, temos de reforçar as nossas práticas democráticas. E para isso é preciso assumirmos que, antes de mais, o que celebramos no dia 25 de abril é a democracia.
Teremos, para isso, de rever as nossas conceções e as nossas práticas democráticas. Ser mais tolerantes com aquele que pensa diferente, mas ser absolutamente intolerantes perante a intolerância. Usarmos as instituições em que representamos os nossos pares para os representar, sendo elementar para isso ouvi-los, melhorar canais de comunicação; aceitar a crítica construtiva e acolher ideias que não são propriedade de quem “manda”; dar voz aos cidadãos ou aos nossos pares e não “jogar à defesa” nem “ao ataque, mas antes partilhar pontos de vista e argumentos. Abertamente e sem partis pris ou intolerância às cedências. Parece-vos este argumentário uma utopia? Deveras. Contudo, como escreveu Eduardo Galeano, “a utopia está lá no horizonte”. Ou como escreveu Churchill, “a democracia é a pior forma de governo, com exceção de todas as demais”.
Já vivemos há mais tempo em democracia do que durou a ditadura do Estado Novo, de 48 anos de pobreza, repressão, desigualdade e guerra. A nossa democracia é jovem e está para ficar. Mas importa estarmos conscientes de que os tempos que vivemos exigem de nós esforços redobrados para não alimentarmos o “ovo da serpente”. Da democracia “musculada” à autocracia é um passo. E desta à ditadura é um saltinho de que nem daremos conta.
O 25 de abril, dizem muitos, não trouxe o que esperávamos. E acredito que queiramos todos uma democracia reforçada, não um simulacro. Mas, como a democracia não tem dono, temos todos de cuidar dela, com custos pessoais, muitas vezes. É da vida.
Enfim, convém não esquecer: não há liberdade sem democracia.
*Artigo publicado na edição de maio do Jornal de Cá.