Como ficara expresso na anterior edição, as Primárias eram subdivididas em duas fações: a Masculina e a Feminina. Queria isto dizer que: rapazes para um lado, raparigas para o outro. No entanto, com a chegada de uma nova professora para as meninas, antevíamos que o cenário do relacionamento entre géneros, até aqui demasiado austero, iria revelar-se um pouco mais amistoso. Não seria bem um tipo de cordialidade de ”tu cá, tu lá”, mas… acreditámos.
A recém-chegada Odete, uma minorca de 1,40m, vinha de outras andanças, de outros registos. Com sangue novo na guelra e evidente convicção progressista, apercebendo-se do clima gélido existente, não descansou enquanto não levou por diante o seu propósito, tendo, para isso, de convencer, a custo, a minha velha mestra que, renitente, custou a anuir à nova maneira de fazer relacionar as meninas com a rapaziada. Como se sabe, o contrário era fácil. Na época, os rapazes eram muito mais liberais e despidos de preconceitos. Mas a noviça, apercebendo-se da ausência de relacionamento, encetou um programa de cantorias populares portuguesas, que agradavam, de modo distinto, aos alunos/as que nele participavam. Por banda das raparigas, que sempre gostaram de cantar, todas receberam de bom grado aquele evento, sem outros subterfúgios, mas, para os rapazes, cada sessão traria vantagens em várias vertentes. Os vaidosolas, porque queriam exibir-se diante das moçoilas; os restantes cromos, onde se inseriam os cábulas, os trauliteiros e os repetentes, também estavam felizes, porque, além de terem a certeza de que, enquanto durasse a exibição do coral, ninguém os obrigaria a estudar, também estavam a salvo dos habituais tabefes.
Então, às quartas-feiras, logo após o almoço, lá ia a Masculina, em peso, inundar os aposentos das meninas. A professora Odete é que comandava as hostes. Ela é que, com ou sem habilitações para o efeito, e mesmo sem partitura, dava o mote e o lamiré, já que, em termos de diapasão, aquilo soava a uma certa desafinação. Começava ela pelo “tau, tau, vira o bacalhau”; seguia-se “João Brandão”; depois a “Tia Anica”, enfim… um rosário de cantilenas que, uma semana, duas semanas depois, seriam repetidas até entrarem nas monas e no ritmo desejado pela docente.
Mas a verdade é que todo aquele aparato, de pretenso convívio, era apenas e só fogo-de-vista, coisa efémera, porque a realidade era bem diferente. Acabada que estava a sessão, ai daquele que se atrevesse a permanecer por ali, em terreno inimigo, ou lançasse um qualquer piropo a uma miúda. Tinha a sentença lida antes do julgamento.
Mas as aulas continuavam e, agora, era tempo de preparar o exame da 3ª classe, já que os professores Castanho e Carmina, vindos do Cartaxo, estariam por aí a chegar para avaliar os nossos conhecimentos. Esta prova, aberta ao público, decorreu com toda a normalidade, pese embora a ausência dos cábulas, alguns já veteranos, que nem sequer foram propostos a exame. Sabíamos, no entanto, que, no ano letivo seguinte, na 4ª classe, as coisas iriam fiar mais fino, mas, bem lá no fundo, era daquilo que nós gostávamos.