O 25 de Abril e as mulheres

Opinião de Ana Benavente

“Elas vão à parteira que lhes diz que já vai adiantado. Elas alargam o cós das saias. Elas choram a vomitar na pia. Elas limpam a pia. (…) Elas andam descalças que os pés já não cabem no calçado (…) Elas olham para o espelho muito tempo. Elas choram. Elas suspiram por um rapaz aloirado, por duas travessas para o cabelo cravejadas de pedrinhas, um anel com pérola. Elam limpam com algodão húmido as dobras da vagina da menina pensando, coitadinha. Elas escondem os panos sujos de sangue carregadas de uma grande tristeza sem razão. (…) Elas inventam histórias de comadres como quem aventura. Elas compram às escondidas cadernos de romances em fotografias. (…)Elas fizeram greves de braços caídos. Elas brigaram em casa para ir ao sindicato e à junta. Elas gritaram à vizinha que era fascista. Elas souberam dizer salário igual e creches e cantinas. Elas vieram para a rua de encarnado. Elas foram pedir para ali uma estrada de alcatrão e canos de água. Elas gritaram muito. Elas encheram as ruas de cravos. Elas disseram à mãe e à sogra que isso era dantes(…). Elas ouviram faltar de uma grande mudança que ia entrar pelas casas. Elas choraram no cais agarradas aos filhos que vinham da guerra. Elas choraram de ver o pai a guerrear com o filho. Elas tiveram medo e foram e não foram(…) Elas disseram à mãe, segure-me aqui os cachopos, senhora, que a gente vai de camioneta a Lisboa dizer-lhes como é. (…) Elas estenderam roupa a cantar, com as armas que temos na mão. Elas diziam tu às pessoas com estudos e aos outros homens. Elas iam e não sabiam para aonde, mas que iam. Elas acendem o lume. Elas cortam o pão e aquecem o café esfriado. São elas que acordam pela manhã as bestas, os homens e as crianças adormecidas.”
Extractos do poema “Mulheres e Revolução” de Maria Velho da Costa, in Cravo (1976).

Se só os mais ricos e poderosos, os mais obedientes, medrosos ou ignorantes, viveram satisfeitos antes de Abril de 74, não podemos negar que as mulheres comeram, no nosso país, o “pão que o diabo amassou”.

Dependentes dos maridos (antes de 74, precisavam de autorização para ter um passaporte, para sair do país e até para abrir conta num Banco), apontadas porque “que ficaram para tias” ou porque eram “solteironas” ou porque “se portavam mal”, as mulheres foram vítimas de violência, quer física, quer simbólica, por atos e por palavras.

Em 1970, poucas mulheres tinham profissão e havia áreas que lhes estavam proibidas: magistrados, militares, carreira diplomática, entre outras.

“Isso não são coisas de menina”. E ele? perguntávamos. “Sempre é homem”, diziam-nos.

Entre o antes e o depois de Abril há um mundo. Viva o 25 de Abril!

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Mas as desigualdades mantêm-se: no trabalho, no espaço público e privado, na política, na TV, na influência da nossa voz.

Os dados sobre a violência doméstica, que só há poucos anos é crime público no nosso país, continuam a ser aterradores.

Por estes dias é notícia a indústria do calçado, que aprovou, pela primeira vez, uma convenção colectiva de trabalho com igualdade salarial: “a trabalho igual, salário igual”.
E termino com um slogan inesquecível do Movimento de Libertação das Mulheres (MLF), no seu início:
“Há alguém mais desconhecido do que o soldado desconhecido: a mulher dele”.
Enquanto não houver, na vida quotidiana, direitos iguais entre mulheres e homens, a luta continua.

Artigo publicado na edição de maio do Jornal de Cá.

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