E pronto… tenho à minha frente 20 pessoas que se conhecem, mas perfeitos estranhos para mim. Falam tão rápido com um sotaque do sul e eu ali sozinho a tentar lembrar-me de como se diz «tenaz» em francês.
Até que um se lembra de me fazer uma pergunta aberta, uma daquelas cuja resposta exige vocabulário. Os nervos invadem-me e é nisto que me vem à memória a primeira vez que falei em público. Lembro-me de mencionarem o meu nome, dirigir-me para o palanque pensando que tinha a braguilha aberta, levantar a cabeça e ver toda aquela gente e fazer-me a pergunta: «mas que carago estás aqui fazer?!». Lembro-me igualmente de querer começar a falar e não o conseguir, como que se alguém tivesse a apontar para a minha boca um compressor de ar comprimido. E é com essa sensação que estou quando um dos franceses me pergunta por que razão abandonei as minhas raízes e vim para frança.
Talvez seja melhor começar pelo início. Vou fazê-lo de modo telegráfico até ao próximo parágrafo.
O meu cunhado convidou todos os seus amigos para o seu quadragésimo aniversário. Estou há 24 horas em França. Viajei sozinho. A minha família viria a juntar-se-me um mês depois. Estou hospedado em casa dele. Tudo me é estranho.
Pensando melhor, vou manter o modo telegráfico… Os convidados começaram a chegar pela tarde. Os rapazes, amantes do BTT, foram andar de bicicleta e as suas respectivas senhoras ficaram a falar dos filhos, de mudanças de casa e de outras coisas que eu não percebo lá muito bem. Estou sentado com elas…
São 18h00, toca o telefone, a minha cunhada fica a saber que um puto de 13 anos, saindo à socapa de casa, foi espetar a sua moto 4 contra o meu cunhado. A bicicleta parte-se em três, o capacete em dois e o estado do meu cunhado gera algumas preocupações, pois a face e a perna esquerda estão em mau estado.
Pensei: bem, o churrasco já era! Mas não… a minha cunhada diz: «vocês ficam todos, o Gilberto vai gostar de vos encontrar aqui quando regressar do hospital!» Ãh! como é? mas quem vai ficar com esta gente?! penso eu. E ela prossegue: «Eu vou para o hospital e o meu cunhado (eu) ficará convosco. Fazes o churrasco e orientas isso, Ok, Gil!». Eles olham todos para mim e eu sorrio, mas por dentro todo eu choro. Choro porque estou a léguas de estar preparado para liderar uma noite, noite toda ela, a falar em francês…
Durante a primeira meia hora safei-me, porque ele era telefonemas constantes para a minha cunhada tentando saber novas do meu cunhado. Depois a fome começou a apertar e estava na hora de preparar o churrasco, pôr a mesa, etc. Estava eu a contar com a ajuda dos meus sobrinhos, mas os safadotes sumiram-se para ir jogar na x-box enquanto o diabo esfrega um olho. E eu ali a tentar encontrar bolsos nos meus calções. Isto quando um simpático rapaz vem ter comigo e me diz que trabalhou em Portugal durante oito meses, numa daquelas empresas de Coimbra ligadas às novas tecnologias. Pensei: óptimo, vou-me agarrar a este como o Camões aos Lusíadas, mas logo me diz que infelizmente não falava quase nada português. No entanto, mesmo perante esta terrível nova, pensei no Lavoisier e na sua Lei do «nada se perde…» e tentei, mesmo assim, desesperadamente, testar o seu português. Começou pelo típico «bom dia» e pelo «boa noite», tendo logo a conversa descambado para os saudosos palavrões portugueses, aqueles que são tão bons para finalizar frases como: Eh pá, o Slimani é um jogador do c&%# ! ou para criar suaves interrupções, tipo: As sapatilhas eram caras para c&%#… depois pensei… que se f%$##&, vou comprá-las na mesma! As coisas estavam a correr muito bem, mas ele teimava em fechar oralmente o palavrão em «ai» e eu a explicar-lhe que terminava em «alho». Estivemos naquilo um tempito até nos apercebermos do ridículo da situação. O Einstein dava como um dos exemplos para explicar a relatividade: «Coloque a sua mão sobre um fogão quente por um minuto, e parecerá uma hora. Sente-se com uma garota bonita por uma hora, e parecerá um minuto». É, mesmo assim, ele foi para mim a garota do Einstein naquela noite…
Somos então interrompidos por um matulão d´1,90 metro que me pergunta: «como é que se acende o barbecue?». Eu, qual provinciano, olhei para a geringonça e deu-me vontade de lhe responder em português: sei lá o… (bem, vocês sabem como normalmente acaba esta frase). Mas não, armado em bom, lancei um ar intelectual para o ovni de assar fêveras/ febras e disse: Não te preocupes eu trato disso!
Ao fim de cinco minutos, vendo o rapaz a olhar para o meu estado de inação achei que o que faltava ali era um «abanador» mas não o via em lado nenhum e ele pergunta-me: «o que procuras?» e eu a querer dizer-lhe em francês, mas só me ocorria abanadeur. Assim, desisti de tentar explicar e fui à sala onde peguei na primeira revista que vi e pus-me energicamente a abanar. Enquanto o fazia, aquele rancho de rapazes falava em surdina, olhando de esguelha para mim. Logo percebi que tinha pegado numa daquelas revistas caríssimas de BTT, daquelas que falam em musculação, em nutrição, em treino antes da competição, de como treinar no inverno, no verão e, se calhar, também na Quaresma e, como estamos em França, quiçá também durante o Ramadão.
Logo percebi que eles perceberam que eu percebia tanto de churrascos franceses como de lagares de azeite.
A noite ia avançando e eles tentavam gentilmente incluir-me nas suas conversas mas eu não conseguia deixar de pensar naquele puto de 13 anos que me colocara naquela situação. Só me imaginava a dar-lhe na cabeça com um saco cheio de rebentos de sésamo.
Acontece que quando estou enervado não ouço o que me dizem, um deles está a falar para mim e como não estou num a momentary lapse of reason, o meu cérebro só processa coisas indecifráveis tipo: pchó, pché, pchó, pché!
Para fugir do pchó e do pché digo-lhes que tenho de ir à casa de banho, dirijo-me a ela qual cavalo de corrida, abro a porta com fúria para logo ser surpreendido por um ser loiro sentado na sanita e pensei: Pronto, só falta um cão levantar a pata e urinar-me nas pernas! Eu desfaço-me em desculpas, ele diz-me, amavelmente, que não tem importância. Não sei se também vos acontece mas a mim quando me sucedem coisas que desejo rapidamente esquecer, tipo a anterior, tento arranjar uma escapatória. A minha é a de tentar imaginar que estou a fazer o passeio do cão com um yô-yô…
No final da noite, os rapazes despediram-se de mim com dois beijos, perante a intensidade da mesma e por solidariedade. Sobre este tormento falarei em capítulo próximo.
P.S: O meu cunhado voltou para casa nessa noite. Voltaria a andar de bicicleta duas semanas depois. É casado em comunhão de adquiridos e tem dois filhos adolescentes. Laranja é a sua cor preferida.