O cancro lusitano

Opinião de João Fróis

Todos os povos têm os seus mitos, com que habitualmente se vangloriam e, na sua sombra, aquelas características que ninguém quer admitir mas constituem o seu adn.

Em Portugal oscilamos entre o orgulho do passado longínquo de navegadores e descobridores e o chico-espertismo, esse malfeitor saloio e corrosivo que espreita na mais vulgar das esquinas e nos rasteira com um sorriso de escárnio.

Vangloriamo-nos de ser um País de gente boa e que sabe receber, que tem um sol fantástico, paisagens de sonho e cultiva os prazeres da boa mesa, bem regada com vinhos únicos. E é verdade. O turismo está em alta e a notoriedade internacional nunca foi tão alta. Mas e o que somos uns para os outros, entre portas?

Perdoem-me a crueza, mas somos uns canalhas. Dúvidas?

Não gostamos de pagar impostos e fugimos sempre que podemos, pensando com os nossos botões “quem quiser que pague, há por aí muitos papalvos”. E é com essa sobranceria medíocre que olhamos para o outro, julgando-o rápida e abruptamente como um inimigo a abater. Nas filas de trânsito é só mais um incomodativo e detestável empecilho à minha real passagem. Nas filas do supermercado é vê-los a correr quando se abre uma nova caixa e os ouvidos são moucos para o “é favor respeitar a ordem de fila”. Respeito! Coisa rara nestes dias que correm. Lá fora a corrida está em marcha e não há lugar para fracos, nem frouxos, nem corações solidários. São esmagados na indiferença fria da cegueira coletiva e arrogante dos que se acham sempre no direito de ser primeiros. Contra tudo e todos. Se continua com dúvidas experimente confrontar um destes “iluminados” e faça-lhe ver os seus pontos de vista. Prepare-se para o pior. Impropérios serão um mal menor.

Continuamos a ouvir aquele som gutural de quem está a puxar um escarro e o vai fazer cair na via pública sem qualquer pudor. Com igual falta de bom senso e respeito pelo próximo vemos o dono do canídeo distraído no seu smartphone enquanto o bicho “pinta” a rua de nauseabundos dejetos. Passeios, ruas e jardins pejados de pontas de cigarros, papéis e garrafas. Carros em cima de passeios, parados em segundas filas sem ninguém lá dentro. Tudo “mimos” nacionais de boas castas!!

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O que dizer do pequeno empresário, cerca de 95 por cento do tecido nacional de empresas e da forma como trata os seus colaboradores. Mal pagos, explorados, deixados à deriva quando a nau desatina e começa a meter água. Nem todos o são, é certo, felizmente, e há muitos e bons exemplos de patrões que sabem reconhecer os méritos de quem dá o seu suor e labor para o sucesso do projeto onde colhe o pão. Aqui, como em tantos outros casos, a exceção confirma a regra.

E o Estado com os falsos recibos verdes e a precariedade induzida? Que exemplo passa a nação? Autarquias despesistas e autênticas centrais de emprego, caça aos votos e jogos florais na submissão de compadrios e luvas pouco brancas. Também aqui experimentemos confrontar quem achamos que abusa do poder. Que iremos ter? Portas fechadas e a imagem queimada nas achas da inveja e mediocridade dos que tudo consentem desde que não lhes tirem os fracos poleiros, onde tudo vale para não daí cair. O Estado é, em Portugal, reflexo do que somos enquanto povo, “forte com os fracos e fraco com os fortes”. Autoritário e inclemente a cobrar a quem não pode fugir e um incompreensível Pilatos com os poderosos, lavando as mãos sujas dos que, debaixo da sua alçada, ousaram corromper, abusar e beneficiar de benesses de outra forma inalcançáveis. São estes “senhores” que criam teias de interesses e perpetuam o nepotismo e favorecimento. A favor de alguns e a custo da maioria.

Veja-se o que sucedeu com a banca nacional. Quem culpadamente levou ao desastre sai impune ficando a fatura para ser paga (porque há sempre uma a ser saldada) pelos mesmos de sempre, os contribuintes. E quem são estes? Potencialmente quase todos nós, cidadãos, mas na verdade menos de metade dos habitantes deste alegre País de oportunistas. O chico-espertismo veste-se então de fatos caros e gravatas italianas e passeia-se entre salões, festas e eventos sociais de glamour e prestígio. A fama ganha-se nem se sabe bem porquê, mas o sucesso tem de ter rostos e estes são a parábola do País virado para o futuro, a apostar no crescimento e na inovação. Palavras bonitas, marketing de última geração, poses de político em campanha. E mudam-se os intérpretes, rodando entre cadeiras douradas, e a culpa dos percalços acaba sempre sozinha.

E nas escolas a desmotivação cresce, os alunos desrespeitam os professores, os pais destes ameaçam-nos e a histeria cega quem ousa tentar alterar esta triste realidade. Nas redes sociais os esgotos da mediocridade e mesquinhez engrossam à medida que as tensões crescem no mundo real e a competição atira muitos para a quase indigência. Vomitam-se ofensas com uma ligeireza aviltante, julga-se tudo e todos os que demonstram ter uma vida feliz e algum tipo de sucesso. A inveja é a arma dos fracos, bem sabemos, e estes canais abriram as portas do ódio que antes apenas cabiam nas minudências do boato. Igualmente corrosivo, mas menos letal e violento, mas com a mesmíssima canalhice egoísta e abjeta perante o outro. O famoso “nacional porreirismo” é uma farsa que se vai alimentando e vestindo a belo prazer de uma imagem de marca que convém manter. A venda turística do País assim obriga. E, nos entretantos da vida, vamo-nos maltratando, abandonando, violentando por ação e omissão. O mundo está mais violento porque nos criaram uma pressão para a qual poucos estão preparados. E quando aperta, o verniz estala e saltam à vista a falta grosseira de educação e civismo, em estamos a anos luz dos nossos congéneres europeus.

Temos virtudes e boas pessoas. Certa e felizmente. Mas o sentimento global, num país onde mais de 80 porcento da população vive no litoral e em redor da grande Lisboa e grande Porto, é de distanciamento dos valores que também nos caracterizam, de compaixão, solidariedade e tolerância. Ainda acredita que somos o “país dos brandos costumes”? Somos brandos a denunciar quem nos oprime e explora, mas somos fortes e vorazes a criticar, difamar e denegrir o vizinho, o colega, o funcionário público, o professor e quem mais venha e esteja a jeito!

Quem por cá vive e se detém a observar o País real, depara-se com uma generalidade de pessoas egoístas e fechadas sobre si, de idosos a morrerem às mãos pesadas da solidão, de rostos tristes e fechados entregues a um fado soturno de quem prefere calar e suportar a ter de emigrar e sujeitar-se a um mundo mais xenófobo, parcial e alienado. Pelo meio, e com tanta frustração, vemos passar carros luxuosos de vidros negros entre as carrinhas de apoio aos sem abrigo que se juntam para a única refeição diária. A desigualdade agudizou-se. A intolerância também. Há poucos (?!) a terem cada vez mais e muitos a terem cada vez menos. Ou quase nada. E lá fora matamos nas passadeiras, ofendemos gratuita e impunemente quem não é das nossas cores e deixamos os nossos filhos entregues ao sombrio mundo virtual, distanciando-os da escola da vida e dos ensinamentos essenciais.

Muito há a mudar e evoluir e o modelo de sociedade tem de ser reformado a dois níveis primordiais: a família, célula estruturante e formadora do indivíduo e o estado enquanto garante, modelo e exemplo. Precisamos de melhores políticos, funcionários e empresários. Se todos contribuirmos a carga será menor e as faturas mais leves e menos duradouras. Mas há que punir quem prevarica, seja qual for a sua condição social, económica ou política, assim como dar mérito a quem produz e se dedica a contribuir para o bem do País. O português queixa-se muito, por regra. Mas só se pode queixar de si próprio e dos seus muitos defeitos. Temos o que merecemos, por certo. E urge mudar, um pouco todos os dias, numa revolução silenciosa e imparável de retorno dos valores estruturantes da sociedade. Porque como a ciência tão bem nos vai demonstrando, o cancro pode ser combatido e vencido. Assim o queiramos! Bem hajam, todos os dias.

Isuvol
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