Crónica de José Caria Luís
Terminada que estava a primeira fase da espinhosa missão da Polícia Aérea na Picaria de Alenquer, e já de volta à Base da Ota na posse das duas encomendas açorianas resgatadas da arena, chegava a hora de proceder à entrega das ditas ao oficial-de-dia tenente Mineiro. Dos seis ocupantes do jipe – eu, dois soldados da ronda, o condutor e os dois bacanos açorianos – certamente que ninguém estaria a pensar em ser recebido com pompa e circunstância por parte do austero oficial; muito menos os prevaricadores que, desfraldados, empoeirados e, por demais, doridos, mercê dos rebolões sofridos dentro da arena, agravados pelos solavancos que apanharam no jipe durante a viagem, achariam que já chegava de festança. Depois de um aturado trabalho de sapa iniciado no redondel da Picaria, correndo o risco de sermos dizimados pela aficionada e enfurecida populaça, o mínimo que se podia esperar do tenente seria, não um louvor, mas uma mera palavra de apreço pelo sucesso da missão levada a cabo. Porém, o oficial-de-dia, estando nos seus dias – sempre mal-humorado – não defraudou as minhas expectativas. A sua curta receção, na presença dos prevaricadores, resumiu-se a isto: – Ora bem! Com que então, estes dois javardos resolveram estragar-nos o domingo, não é assim? – e sem se deter – Agora, vão dormir aqui uns dias (na Casa da Guarda) e veremos se ainda não terão que ir estagiar uns tempos para Elvas. O nosso cabo vai tratar de fazer a participação desta ocorrência, com todos os detalhes.
Nesse momento, um dos soldados da Picaria resolveu mostrar as costas ao tenente, alegando ter sido agredido nas pernas e no costado durante a atribulada viagem, tendo eu contraposto, argumentando que o resultado de tais mazelas se devia, principalmente, às marradas das vacas durante a atuação do duo na faena. Seria por demais evidente que alguns solavancos apanhados no percurso entre Alenquer e a Base nunca se manifestariam com tal amplitude. Por certo, pensaria o bacano que, com tal argumento, iria ser louvado pelo espírito de sacrifício ou, então, por bravura de soldado, tal como a bravura das reses que lhes aqueceram os corpos. De volta ao convívio, e após ter analisado o mapa lombar de ambos, diz-me o tenente Mineiro: – Leva estas duas encomendas à enfermaria e, depois, trá-los cá.
Depois de vistos e tratados pelo 1.º sargento “Vitaminas”, entreguei-os ao tenente e lá fui elaborar o extenso e complicado texto da participação daquela rocambolesca efeméride, que meteu vinho, toiros, arruaça e alguma pancadaria, no rescaldo.
O cartaxeiro tenente Mineiro vincava bem a sua personalidade e austeridade enquanto militar. Além de fazer por “desconhecer” os seus conterrâneos que militavam na Base, era o único oficial-de-dia que, pela alvorada, ia de camarata em camarata, batendo de porta em porta, quais pancadas de Molière, a fim de acordar o pessoal; mesmo aquele que estava isento da formatura do “café”. Por razões óbvias, manda-me o decoro que não reproduza aqui as respostas emanadas do interior, mas que elas eram castiças e bastante hilariantes, lá isso eram…
Artigo publicado na edição de dezembro do Jornal de Cá.