O Cemitério Municipal do Cartaxo. Arquitectura e Escultura no museu da saudade

Bagos da Memória, por Pedro Gaurim

Pedro Gaurim

O início do mês de Novembro é marcado pela visita aos cemitérios, e a memória, devoção e oração pelos entes queridos. Lavam-se campas, substituem-se flores. Depois, quase sempre se circula e se visitam outras sepulturas, encontram-se pessoas, contam-se histórias, avivam-se memórias e foge-se da chuva, quase sempre presente no Cartaxo nos dias 1 e 2 de Novembro.

Raramente, porém, se visita um cemitério do ponto de vista cultural, e a ideia de aí fazer turismo é considerado mórbido por muitos. Nada mais errado, não se devendo confundir o pudor dos assuntos relacionados com a morte, com a memória e as obras artísticas. Os cemitérios que tenham muitas sepulturas do século XIX e da primeira metade do século XX são verdadeiros museus de escultura e cantaria ao ar livre, que espelham várias épocas em simultâneo. Há mesmo povos que os incluem nos seus roteiros de passeio, sendo os alemães o povo que mais os visita do ponto de vista cultural, incluindo em Portugal.

Devemos encarar as representações que se vêm nos cemitérios como símbolos e formas de comunicação. A época dourada da arte cemiterial decorreu entre os meados dos séculos XIX e XIX, período durante o qual se criou a maioria dos nossos cemitérios e proliferou a maior variedade de modelos escultóricos relacionados com a morte. Comparativamente com o passado, hoje a maior parte dos modelos de campas e jazigos é pobre em arquitectura, escultura, e símbolos.

Por coincidência, o período referido corresponde ao apogeu económico do Concelho do Cartaxo, que se reflectiu de forma invulgar nos cemitérios, em particular nos de Cartaxo, Pontével, Ereira, Valada, mas também nos mais recentes da Lapa e Vila Chã de Ourique.

 

Arquitectura

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O Cemitério Municipal do Cartaxo tem algumas características singulares: uma planta muito cuidada, regular e com proporções planeadas, num comprimento de 100 m por uma largura de 75 m ( comprimento na relação 4/3 da largura), com duas avenidas com invulgar largura, que se cruzam de forma clássica, como o cardo e o decumano do urbanismo romano, ladeadas por uma quantidade significativa de campas e jazigos antigos de grande categoria; a avenida central e a capela, neogótica, são invulgarmente grandes. A capela (Figura em destaque), colocada ao fundo da artéria, diametralmente oposta à entrada, aumenta a precepção da escala. Esta configuração, numa escala mais pequena, foi repetida em todos os cemitérios do concelho. A paredes exteriores da capela, têm uma pintura de fresco a imitar blocos de liós rosa, escondida sob várias camadas de cal branca. No topo da fachada, um campanário que em vez que um sino tem uma urna. Esta capela imita a pedra liós dos jazigos antigos, que se estivesse limpa e as paredes da capela recuperadas, daria um efeito de grande dignidade e sumptuosidade. Não devia descartar-se a ideia de recuperar esse aspecto, numa intervenção cuidada, identificar campas e jazigos a preservar e inserir este cemitério numa rota internacional.

Planta esquemática do cemitério do Cartaxo (a verde os buxos e os rectângulos correspondem aos jazigos)

Devemos referir que o cemitério contempla 10 ruas com cerca de 875 metros, com duas ordens de largura formando um xadrez rectangular, com bons pavimentos e valetas de calçada antiga, tudo sobre um terreno aplanado, com uma inclinação propositadamente quase imperceptível, com material arenoso, tudo conferindo uma boa drenagem da água das chuvas. Foi certamente planeado por alguém que conhecia a arquitectura de jardins e cemitérios estrangeiros, possivelmente franceses, que serviram de referência aos portugueses. Acreditamos na possibilidade da planta/projecto tenha sido fornecido pelo Governo Civil de Santarém e entregue a um construtor local.

A planta é dividida em 8 “quadrilongos”, contornados por jazigos nas ruas principais e por buchos nas ruas secundárias (Figura ao lado). Cada “quadrilongo” é identificado por um poste antigo, de pedra calcária, colocado junto do muro. Rodeando este rectângulo planeado, há depois três quadrilongos (nrº 9, 10 e 11) fora desta regularidade, duas ampliações e a casa do coveiro, construída possivelmente na década de 1980.

 

Proposta do Templo Salomão numa gravura de 1546, da obra Biblia Hisaccesserunt schemata Tabernaculi Mosaici, & Templi Salomonis” [“O Templo de Salomão segundo a Biblia”], de François Vatable (? – 1545). Fonte: Wikipedia Commons.
Referente Arquitectónico

Com grande probabilidade, o referente urbanístico / arquitectónico é uma variante das propostas do Templo de Salomão, desenhadas por diversos autores (Ver Figura), ao longo do tempo, a partir das referências bíblicas que descrevem o Templo (1 Reis 6:1; 1 Crónicas 28:11-19) e que serviram de referência do rei David ao seu filho Salomão para continuar a obra.

As descrições e medidas inspiraram diversas personalidades planear propostas arquitectónicas e sabe-se que se concretizaram em muitos edifícios como o Mosteiro do Escorial, o Convento de Mafra ou o jazigo dos Duques de Palmela, o maior da Europa, situado no Cemitério dos Prazeres em Lisboa. Também algumas sinagogas, jardins, etc, foram decalques dos planos e das imagens criativas do que teria sido o templo de Salomão. Ainda hoje a Arqueologia, que começou a procurar respostas científicas em meados do século XIX, não conseguiu uma imagem definitiva desse Templo.

É preciso compreender que o decalque das várias propostas do Templo de Salomão, a partir das descrições bíblicas, se relacionam sobretudo com o desenho geral e a circulação e menos com a distribuição de edifícios, corredores e pátios e questões decorativas, daí que se possa adaptar este modelo ao desenho de um jardim, uma praça, um edifício, um tapete, o desenho de um pavimento, etc.

proposta de Isaac Newton para a planta do Templo de Salomão, 1728. Fonte: Wikipedia Commons.

Uma das mais conhecidas propostas (Ver Figura) é de Isaac Newton (1642-1727), um dos mais famosos que elaborou uma planta do Templo de Salomão, na sua obra ‘The chronology of ancient kingdoms amended : to which is prefix’d, a short chronicle from the first memory of things in Europe, to the conquest of Persia by Alexander the Great: with three plates of the temple of Solomon’ [A cronologia dos reinos antigos alterada: introduzida por uma breve crónica desde a primeira memória de acontecimentos na Europa, até a conquista da Pérsia por Alexandre, o Grande: com três gravuras do templo de Salomão] (Dublin, 1728).

 

Jazigos, campas e Iconografia / Imagética agrícola

No Cemitério do Cartaxo ainda existe uma boa quantidade de campas e jazigos com representações de actividades agrícolas que é a característica mais significativa, comparativamente com outros cemitérios. Além destas, as representações variam entre a iconografia cristã, maçónica e os significados das flores, que vinham sendo cultivados desde o século XVII, por exemplo, na pintura de natureza morta.

Primeiro jazigo-capela francês, de 1815, que viria a servir de modelo. Fonte: Wikipedia Commons.

Entre os jazigos podemos distinguir a quantidade (impressionante) de 62 jazigos-capela e uma boa quantidade de jazigos subterrâneos, sendo destes, o mas famoso e despojado, o de Marcelino Mesquita (1856-1919), com o seu memorial inaugurado no Centenário da sua morte em 2019. Os jazigos do século XIX em Portugal são sobretudo de influência francesa e caracterizadores dos cemitérios modernos, construídos fora das localidades. O primeiro jazigo-capela francês foi o da família do banqueiro Greffulhe (ver Figura), situado no Cemitério do Père-Lachaise em Paris e projectado por Alexandre-Theodore Brongniart (1739-1813) em 1812 e executado em 1815. No caso português, o primeiro jazigo capela foi o nº7 do Cemitério dos Prazeres, construído em 1840 e já desaparecido.

Apesar de quase todos os jazigos e grande parte das campas no Cartaxo referirem a oficina produtora, não parece haver aqui obra de arquitecto ou escultor. Aqui domina a arte do canteiro e a sua habilidade no trabalho de imitação da pedra, auxiliado pelo pantógrafo, para aumentar ou diminuir o desenho que lhe é pedido reproduzir.

Imagens agrícolas e sino de Páscoa alusivo à Ressurreição, no jazigo de José Bento da Costa (que viveu no edifício da LavriCartaxo)

A arquitectura e decorações dos jazigos e campas são na maioria decalques do que se vêm nos cemitérios que serviram como referência, nomeadamente os de Lisboa ou Santarém, e que por sua vez imitam os modelos franceses. A grande originalidade deste cemitério reside nas representações agrícolas, em especial associadas à produção e comércio de vinho, que foi a origem da riqueza e progresso locais (Ver Figura).

Dos jazigos capela, os mais antigos são provenientes de oficinas especializadas de Lisboa, como as oficinas do Largo do Corpo Santo: J. M. Correia (Nºs 20-22), J. C. Correia e Irmão, ou o Marcolino da Rua do Cais de Santarém (Nº26), Romano Rodrigues da Rua do Benformoso (Nº151); sendo os mais recentes já executados em oficinas do Cartaxo: J. M. Coelho, José Jorge Nunes (jazigos Arte Dèco), José do Carmo, Francisco Júlio da Fonseca; mas também, outros, como Guilherme Victor de Vila Franca de Xira. Com atenção, conseguimos detectar modos de fazer comuns nos jazigos das mesmas oficinas, sem observarmos a sua identificação.

Em alguns casos percebemos pelas inscrições, que os jazigos não têm hoje as famílias originais, tendo sido adquiridos por outras que mantiveram a arquitectura mudando apenas as inscrições e por isso, há que ter alguma reserva quando pretendemos associar o conjunto de representações simbólicas à família actual.

Outro aspecto de grande relevo neste cemitério, é o facto de haver 10 vitrais que iluminam o altar dos jazigos-capela), uma quantidade significativa, tal como acontece em Pontével, e todos com assuntos cristãos. Permitem a entrada de luz e substituem os respiradouros que existem na maioria dos jazigos. Esta característica é um sinal de distinção, uma vez que os vitrais tinham de ser realizados em oficinas especializadas e a parede testeira do jazigo pensada para incluí-lo.

Berço que reúne e protege as campas de José Duarte Lima (1832-1908), proprietário e produtor vitivinícola, que construiu o edifício da Rua Batalhós que viria a ser Cunha 13, Grémio do Comércio e Câmara Municipal. Viúvo inconsolável, para sempre se quis reunir com sua esposa Gertrudes Magna Pereira Lima (1810-1897), como se lê nas inscrições.

À parte das originalíssimas representações agrícolas em frontões de jazigos-capela e de cabeceiras de campa, cujo referente ainda está por descobrir, encontramos os símbolos fúnebres habituais: a árvore decepada, o anjo que chora debruçado na urna, ou o monte de pedras que evoca algumas sepulturas pré-históricas, etc, são imitações de idênticas sepulturas existentes nos grandes cemitérios das capitais portuguesas e europeias. Também devem ser alvo de atenção na preservação, os elementos de ferro, como os gradeamentos artísticos em redor de campas, designados “berços” (Ver Figura), bem como as portas de ferro fundido, de dimensão padronizada, decoradas quase sempre com a ampulheta com asas, lembrando-nos que “o tempo voa”. A rematar as empenas dos jazigos, urnas fogaréus, anjos da morte, com a cruz e um livro. Aí se encontram também símbolos da morte e Ressurreição, como cruzes e sinos alados ou sinos de Páscoa.

Vale a pena referir a vaga de roubos de metais que se deu durante a crise económica, no período entre 2011 e 2014, quando também se roubou muito fio eléctrico por causa do cobre. Estas acções de vandalismo afectaram vários jazigos, nomeadamente o do insigne professor primário Mestre Cid (1858-1929), datado de 1934, ano em que foi homenageado não só com este jazigo, mas também com a atribuição do seu nome de uma avenida do Cartaxo. Ao seu jazigo roubaram as letras “A B C” que remetiam para o ensino das primeiras letras. Também foi vandalizada a sepultura do Capitão David Araújo, cujas balas nos cantos e as correntes que as unia foram roubadas. David Araújo foi herói da Guerra Colonial, morto em combate em Moçambique a 29 de Julho de 1965. Foi e homenageado pela Câmara Municipal do Cartaxo, com esta campa, a 29 de Julho de 1966, e no mesmo ano ano, com uma biografia da autoria de Maria Odete Almeida Duarte e Eduardo Serpa, publicada pela Escola Nacional de Estudos Ultramarinos da Mocidade Portuguesa.

Conclusão

O Cemitério do Cartaxo constitui um conjunto de património histórico e cultural muito significativo, que deve de ser estudado, conservado e divulgado. Este deve ser um desígnio da Câmara Municipal que o gere. As campas e jazigos mais significativos, que estimamos em cerca de 200, deveriam ser inventariados e preservados. É um manancial de informação a publicar em próximas oportunidades, ao nível das figuras locais de grande relevo, da iconografia agrícola, dos vitrais, das peças de serralharia, das inscrições e mensagens fúnebres, etc. Tal como se faz noutros países, as cabeceiras e campas com interesse artístico deveriam evitar remover-se do local original e na inevitabilidade, serem conservadas suspensas nos muros.

Não restam dúvidas que este cemitério, inserido nas rotas próprias, e em conjunto com a zona velha, a arquitectura Arte Nova, a arquitectura de adega, a azulejaria de fachada, em conjunto com a belíssima gastronomia, o vinho, a Festa Brava, e as esculturas de Leopoldo de Almeida, constituem motivos para projectar o Cartaxo no Turismo de qualidade.


*O autor escreve segundo a antiga ortografia

 

Referências Bibliograficas

CUNHA, Armando Santinho, A Simbologia das Plantas dos Antigos Mistérios à Maçonaria Actual, Hugin-Editores Lda., Lisboa, Outubro de 1999

FLORES, Francisco Moita, Cemitérios de Lisboa: Entre o Real e o Imaginário, Câmara Municipal de Lisboa, Lisboa, 1993

GONÇALVES, Sara, MESQUITA, Sandra, MONTEIRO, Gisela, Flores de Pedra, Câmara Municipal de Lisboa, 2020 (catálogo da exposição realizada na Galeria de Exposições da capela do Cemitério dos Prazeres em Lisboa, de 4 de Dezembro de 2020 a meados de 2021)

RATO, António Filipe, A Batalha de Almoster, [Colecção “Cartaxo. 200 Anos do Concelho”], Edição do Jornal de Cá, Cartaxo, 2015

“O seguinte autor é uma referência com vasta bibliografia nos estudos cemiteriais em Portugal:

QUEIROZ, Francisco, Os Cemitérios do Porto e a Arte Funerária oitocentista em Portugal,

Dissertação de Doutoramento de História da Arte da Universidade do Porto, 2002

QUEIROZ, Francisco, Os cemitérios Históricos e o seu Potencial Turísticowww.franciscoqueiroz.com

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