O cinema faz falta

Causa Pública, por Elvira Tristão

A 15 de junho de 1947 era inaugurado o Cine-Ribatejo com a “apresentação do grandioso e deslumbrante filme em tecnicolor” Era o seu destino, com Ivone de Carlo como artista principal. O hábito de ir ao cinema começara há cerca de duas décadas, em cinematógrafos improvisados, sendo a apresentação dos filmes de iniciativa privada, como o Cine Ferrony e o Circo Mariano. De abril de 1946 a junho de 1947, os cartaxeiros passaram a ver cinema nas antigas instalações do Ateneu Artístico Cartaxense. Entre 1946 e 1955, no velho Cine-Ribatejo, há evidências de uma notável regularidade de oferta de cinema, a uma média de um a dois filmes por semana.  O velho Cine-Ribatejo manteve vivo o hábito cultural de ir ao cinema até 1988, altura em que encerrou portas. A televisão passou a ser uma séria concorrente do cinema e com os clubes de vídeo o negócio deve ter passado a dar prejuízo.

No final dos anos 90, perante a ameaça de venda do imóvel para fins de culto religioso, o Município do Cartaxo, com largo apoio da Assembleia Municipal e dos cartaxeiros, veio a adquirir o imóvel. Com financiamento comunitário destinado à reabilitação de equipamentos culturais, foi construído o Centro Cultural Município do Cartaxo. Com uma arquitetura arrojada, que inicialmente ofereceu resistências aos olhos dos mais conservadores, o CCC – como carinhosamente é hoje designado – impôs a sua presença singular no edificado urbano. Estreou, a 10 de junho de 2005, com um magnífico concerto de Rodrigo Leão e Cristina Branco. E viria a ser referência em revistas de arquitetura fora de portas. De 2005 a 2022 acolheu centenas de espetáculos, com produções de elevadíssima qualidade, como as dos Artistas Unidos e do Teatro Nacional D. Maria II. Proporcionou inúmeros espetáculos às crianças e jovens das escolas do concelho, muitos gratuitamente, fruto das parcerias existentes entre o Município e agentes culturais financiados pela Direção-Geral das Artes.

Em abril do ano passado, ficámos sem CCC devido a uma grave inundação causada por avaria técnica, cuja responsabilidade está por apurar judicialmente, em virtude de não haver acordo entre o Município e a empresa de manutenção do sistema de alarme contra incêndios. Aos poucos, o espaço e o equipamento têm vindo a ser recuperados. Mas há uma valência de que nunca mais se ouviu falar.

O Cinema, que justificou a construção do Cine-Ribatejo em 1947 e a sua reabilitação em 2005, continua de portas fechadas. Em tempos de canais de TV em streaming e de internet para todos em todos os lugares, investir na programação de cinema não será certamente lucrativo. Será até grande o desafio de criar público, sobretudo depois de mais um tão grande interregno. Contudo, faz falta a criação de hábitos culturais que juntem as pessoas em torno de uma boa história, ou de um documentário de qualidade. O cinema, ou a sétima arte, como é conhecido, tem a particularidade de nos convidar a viajar por outras paragens ou de nos obrigar a refletir sobre a nossa condição humana. O Município dificilmente conseguirá competir com o cinema comercial que encontramos em Lisboa ou em Santarém. Duvido até que seja essa a função de um equipamento público. E porventura não terá plateias numerosas. Talvez não seja possível voltar aos anos 50 do século passado e garantir mais do que um filme por semana, mas seria muito importante voltar a ter cinema às sextas, ou às quintas. Há hoje, como no passado, muitas pessoas que gostam de um bom filme. Ainda há quem espere a reabertura da sala de cinema. Ainda é possível dar centralidade ao cinema na vida cultural dos cartaxeiros. Assim se queira.

O que urge é recuperar o espaço e dotá-lo de equipamento de projeção atualizado. O cinema faz parte dos hábitos culturais dos cartaxeiros praticamente desde que foi inventado. Apesar da importância do auditório José Saramago para o acolhimento de espetáculos, em nome do nosso legado cinéfilo, não podemos adiar mais a reabilitação da sala de cinema. Reabilitar o espaço e ter um plano para a programação de cinema é para ontem. E os autarcas não têm a obrigação (nem devem ter a tentação) de fazer programação de cinema. Assim de repente, estou a lembrar-me de meia dúzia de nomes de jovens com provas dadas na área do cinema– em Portugal e além-fronteiras. Talvez esteja na altura de os ouvir e de traçar um plano que contemple vários públicos a cativar, para fazer do cinema uma prática cultural e educativa que faça de todos nós uma sociedade mais sensível, mais crítica, mais criativa, numa palavra, mais capacitada.

Isuvol
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