O dia que lhes marcou a vida para sempre

*Reportagem publicada na edição impressa do Jornal de Cá, em fevereiro de 2018.

Passados mais de 30 anos ainda há coisas por dizer entre os colegas do 8º C que sobreviveram à explosão de gás na Escola Secundária do Cartaxo. Um dia fatídico relembrado na redação do Jornal de Cá (em 2018) por oito alunos daquela turma, quatro dos quais não estavam na sala quando tudo aconteceu

Ao longo de 33 anos, o dia 25 de janeiro de 1985 nunca mais foi esquecido no Cartaxo. Foi o dia da explosão na Escola Secundária que abalou todo o concelho e vitimou 15 alunos, dois dos quais mortalmente, assim como a professora, que iniciava a segunda hora da aula de Educação Visual, depois de ter faltado à primeira hora. Este facto terá feito com que os outros 17 alunos da turma do 8ºC, também eles para sempre marcados por aquele dia, não se encontrassem ainda na sala quando tudo aconteceu.

“Era uma turma bastante unida.”

Anabela Arcanjo

“Era uma turma bastante unida”, diz-nos Anabela Arcanjo, uma das vítimas da explosão que ajudou a juntar alguns destes ex-alunos do 8ºC, dias antes de se assinalarem os 33 anos do acidente na escola, na redação do Jornal de Cá. Já há três anos o Jornal de Cá acompanhou um encontro que juntou quase toda a turma, também organizado por Anabela que, passadas três décadas, decidiu reunir todos os colegas e não apenas o grupo que estava na sala de aula e sobreviveu à explosão de gás e que durante meses esteve preso aos hospitais e aos tratamentos de fisioterapia.

Este ano foi diferente. O Jornal de Cá desafiou Anabela a contactar de novo todos os colegas para um encontro em que todos pudessem falar das suas vidas depois do trágico acontecimento que os apanhou na adolescência, na sua maioria com 14 anos. Hoje, todos com mais de 45 anos de idade, César Tavares, Cláudia Anastácio, Rosabela Delgado, Luísa Lopes, Alda Semedo, Paulo Renato Tavares, Anabela Arcanjo e Luís Vasco Rebelo recordam aquele dia com uma lucidez que nem parece terem passado mais de 30 anos. O encontro foi marcado à porta da escola, num sábado à tarde, para fazer as fotos de grupo. Não apareceu toda a gente, alguns dos quais sabemos que tinham outros afazeres que não podiam desmarcar. Paulo Renato, por exemplo, só conseguiu aparecer na redação do Jornal, não ficou na foto de grupo.

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“Tivemos que ser fortes naquela altura.”

Cláudia Anastácio

Dos oito elementos da turma que marcaram presença neste encontro, metade não estava dentro da sala quando tudo aconteceu, fazem parte do grupo dos “outros”, os que não sofreram na pele a dor das queimaduras e todo o sofrimento que se seguiu com os internamentos, tratamentos e operações. Mas também eles sofreram muito… em silêncio. Foram precisos muitos anos para que o grupo que escapou à tragédia tivesse uma palavra a dizer, nomeadamente, aos colegas vitimados. Afinal, “a prioridade eram eles, daí o nosso silêncio”, diz Cláudia, acrescentando que “tivemos que ser fortes naquela altura. E depois chegou a hora de irmos visitá-los a casa e isso para nós foi difícil… como é que nos vamos unir outra vez?”, pensou na altura.

“Via as outras colegas na rua dizia-lhes adeus e tinha vontade de lhes falar sobre isto.”

Rosabela Delgado

Para César a separação dos dois grupos da turma também aconteceu pelo facto de ambas as partes terem vivenciado experiências diferentes. “Eles apoiaram-se uns nos outros”, diz, mas lembra-se de ir de Pontével a pé para ver o Luís “e foi um alívio, porque eu sentia que aquela pessoa que estava ali era aquela que eu tinha rejeitado como amigo, antes de tudo acontecer, simplesmente porque tínhamos gostos opostos. O Luís era mais ligado às artes e eu era mais futebol. Não havia uma inimizade, mas também não existia uma empatia. Aos poucos nós fomo-nos juntando e a Anabela foi quem facilitou essa união, passados muitos anos”, porque, recorda, “houve uma altura em que eu senti que havia ali uma redoma, em redor deles, em que era muito difícil entrar”.

O sofrimento dos “outros”
Cláudia, como outros 16 colegas, teve a sorte de não ter entrado na sala para aquela segunda hora de Educação Visual. A professora não tinha dado a primeira hora e muitos dos alunos do 8ºC não esperavam que viesse à segunda. Mas veio. Uns viram-na passar no corredor, outros foram avisados de que a professora ia dar a segunda hora de aula, mas nem todos entraram na sala. Muitos estavam na biblioteca e a pensar ir à aula, tal como outros que, estando na escola, não seguiram de imediato para a sala. Mas todos deram pela explosão e viveram de perto os momentos de aflição que se seguiram, com gente a gritar e a fugir, sem saber bem porquê nem para onde. Muitos nem se terão apercebido de que tudo tinha acontecido com a sua turma.

“Tenho as imagens gravadas como se fosse hoje.”

César Tavares


Alda Semedo, que hoje conhecemos do Rancho Folclórico e Regional do Vale da Pedra, pertencia ao 8ºC e estava ainda na biblioteca quando tudo aconteceu. “Durante todos estes anos me culpabilizei por isso, porque era delegada ou subdelegada de turma e muitos deles estavam dentro daquela sala por minha culpa”, diz Alda, recordando o momento em que a auxiliar de educação a encontrou perto da sala com outras duas colegas e pediu que avisassem os restantes que a professora vinha dar a segunda hora. “Eu andei a correr atrás deles todos a dizer ‘a professora vem dar a segunda hora!’ E eu estou nesta metade da turma que não teve nada, com um sentimento de culpa enorme”, desabafa com pesar.

“Estou nesta metade da turma que não teve nada, com um sentimento de culpa enorme.”

Alda Semedo

César Tavares terá sido um dos colegas avisado por Alda de que ia haver aula. “Digamos que eu era um aluno irreverente e já tinha muitas faltas àquela disciplina”, diz, recordando que lá conseguiu convencer o colega de turma e amigo Paulo Soares a ir, depois deste se mostrar disposto a dar folga à professora na segunda hora, “como irreverente que era”. Estava entretido com a namorada, acedeu a ir à aula mas ter-lhe-á pedido: ‘espera só um bocadinho que nós vamos já’. “E foi nesse bocadinho que se dá aquele trágico acontecimento”, conta. “Estava à espera do Paulo Soares e senti aquela onda de choque e de calor, não há explicação, e fugi pelo lado do depósito da água. Demos depois a volta pela parte da frente da escola e o que eu via não era real, parece que via tudo em câmara lenta… Eu tenho as imagens gravadas como se fosse hoje. Os estores voaram direito ao café do outro lado da rua, entretanto a sala estava em chamas e eu lembro-me que os colegas que eu vi – já vitimados, mas que não vi quem eram – eram vultos, não consegui conhecer ninguém, não sabia que eram os meus colegas e nem sequer me lembrei que a sala que estava em chamas era a sala de desenho. Tal foi o choque…”

Também Luísa Lopes se encontrava na biblioteca e recorda que “quando se deu a explosão, a escola tremeu e os miúdos começaram a gritar muito”. Memórias que custam a sair da cabeça e que ainda mexem muito com as emoções destes ex-alunos do 8ºC. Luísa não esquece os momentos de desorientação e desespero que se seguiram, nomeadamente, “quando venho à porta da biblioteca e passa a Rosabela com o kispo em chamas e segue por um corredor e eu corri por outro, fui até ao bar e, não sei como, saí do outro lado da estrada e a Rosabela dentro da escola no muro a pedir-me ajuda… tentei encaminhá-la para o portão da escola”, mas, em pânico, “eu não a consegui ajudar”, conta agora, agarrada às mãos da colega, sem controlar as lágrimas.

“Em relação às entidades superiores da escola nós não tivemos apoio nenhum.”

Cláudia Anastácio

Pode dizer-se que tiveram sorte de não chegar a entrar naquela sala, mas estes e outros relatos daquele dia, que ouvimos na redação do Jornal de Cá, mostram o sofrimento por que passaram estes ex-alunos, na altura e nos anos que se seguiram. Eles não sofreram a mesma dor dos colegas que estiveram debaixo de fogo, mas sofreram por eles; não ficaram fisicamente marcados para a vida, mas as marcas estão lá, não se veem, mas eles sentem-nas até aos dias de hoje. E isso percebeu-se pela forma como se expressaram, como lembraram certos pormenores, como se dirigiram uns aos outros, chegando até à comoção. Passaram décadas e guardaram dentro deles todas estas mágoas, que agora, finalmente, conseguem deitar cá para fora.

“Em relação às entidades superiores da escola nós não tivemos apoio nenhum. Nunca ninguém da escola, nem diretores, nem professores, veio ter connosco, nunca ninguém se preocupou como é que nós estávamos. Aquilo era uma aula e eu toda a vida ouvi que me safei àquilo porque faltei à aula… Eu não faltei, simplesmente tive uma força gigante que me empurrou dali no momento exato. Eu ia à aula”, esclarece Cláudia.

“Lembro-me do momento em que voltei à escola e encontrei uma sala com as cadeiras vazias. E não havia um psicólogo, não houve ninguém a apoiar, ninguém”, lamenta César, lembrando os traumas daqueles miúdos – “batia uma porta com mais força e as pessoas fugiam”. Todos se lembram da primeira aula depois do sucedido. Numa turma com mais de 30 alunos, em que muitas vezes havia dificuldade em sentar toda a gente, como recorda Alda, naquela primeira aula foi doloroso ter apenas “a fila da janela e mais duas ou três secretárias da segunda fila com alunos”, diz Luísa, que se lembra que “ficámos em silêncio” e hoje, passados mais de 30 anos, percebe que “entrámos em luto na aula”, estavam em falta os seus colegas, alguns dos quais encontravam-se entre a vida e a morte. Mas a aula aconteceu, “como se fosse um dia normal. Entrámos e começámos a dar a aula, como se nada se tivesse passado”, conta Cláudia.

Reconciliação da turma
Foram precisos cerca de 30 anos para que ambas as partes que formavam aquela turma do oitavo ano chegassem à conclusão de que havia muito a dizer uns aos outros. “Éramos dois grupos, mas a maior parte de nós só se apercebeu de um grupo, que era aquele que viveu junto o mesmo problema durante aqueles meses. Pouco antes de fazer 30 anos do acidente, encontrei a Cláudia e, em conversa, falámos do assunto e foi quando eu tive a perceção de que realmente houve ali uma separação, sem querer, sem pensar… Mas esquecemo-nos da outra metade da turma que não estava. Isso para mim, foi um bater lá no fundo! E foi por isso que nos 30 anos resolvi juntar toda a gente e, desde esse dia, embora não tenha contacto diário com todos, mas vamos falando, penso neles muitas vezes e para mim é um grupo. Somos amigos!”, resume Anabela. E, pode dizer-se, esta amizade saiu reforçada.

“Os colegas da turma que não estavam na sala tiveram muita sorte e ainda bem.”

Luís Vasco Rebelo

Rosabela diz que, na altura, nunca lhe passou pela cabeça o sofrimento que poderiam estar a sentir os colegas que tiveram a sorte de não estar naquela aula. Só mais tarde, e também graças à Anabela, que tentou juntar todos os colegas da turma, é que percebeu que também eles ficaram com marcas profundas daquele dia. “Eu via a Alda e via as outras colegas na rua e dizia-lhes adeus e tinha vontade de lhes falar sobre isto. Também porque ia falando com outras pessoas, que não eram da turma, mas que também andavam na escola, e ouvia-as falar daquele dia e por elas eu conseguia ver que estes colegas também haviam de ter alguma coisa a dizer e precisavam de dizer. Ouvi muita gente dizer ‘eu corri por vinhas abaixo’; ‘eu fugi’; ‘eu vi-te’, tal como a Luísa estava a dizer, isto tem de sair cá para fora. Mas eu não tinha esta perceção e não sabia que isto era tão importante para mim e tornou-se importante. Acho que foi uma das coisas melhores que aconteceu foi nós irmos juntar a outra parte da turma. Eu não sabia sobre mim muita coisa que estas pessoas vieram dar-me a conhecer. Eu agradeço-lhes do fundo do meu coração!” A ex-aluna, agora professora do ensino básico no Cartaxo, agradeceu também ao Jornal de Cá “esta oportunidade de juntar elementos dos dois grupos, porque me fez muito bem a mim e fez-lhes muito bem a eles”.

E os agradecimentos não se ficam por aqui. Rosabela também agradece aos colegas por não terem lá estado, “porque a desgraça tinha sido muito maior, se vocês tivessem ido àquela aula. Eu já estava fora da escola, mas tinha de ser para mim, eu tinha de voltar”. Também Luís Vasco fez questão de dizer algo que sempre sentiu, mas que, por qualquer razão, nunca disse: “os colegas da turma que não estavam na sala tiveram muita sorte e ainda bem. Fiquei muito contente porque eles não estavam lá, da mesma forma que os que estávamos na sala ficámos muito contentes por não estarmos no lugar onde está o Fernando e a Carla”.

Ainda assim, foi um golpe muito duro para aqueles miúdos que sofreram queimaduras muito graves, deixando marcas profundas nos seus rostos, nas mãos e noutras partes do corpo. Depois da explosão, já fora da sala, recorda Rosabela, “eu olhei para a Belita, estávamos as duas, e perguntei ‘tenho muito’? – ‘não, estás bem’. ‘E eu?’, perguntou ela, ‘não, também estás bem’. As duas com as peles das mãos penduradas, mas o importante era estarmos bem, não termos muito… não termos sei lá o quê”. Preocupação típica de duas adolescentes, que ainda não estavam em si, sem sequer medir as consequências da situação ocorrida. Também Cláudia se recorda que Anabela lhe pediu um espelho, “e eu olhava para ela, sem reação”. E Anabela só se terá dado conta da situação quando viu a colega Ana Cristina “aí entrei em pânico e pensei: isto não está nada bem. Foi quando me pus no meio da estrada e parei a dona Ermelinda no seu Escort amarelo, que ficou sem saber o que fazer à vida e eu disse ‘desculpe, mas vai ter de nos levar ao hospital’”. E foi assim que muitas das vítimas do acidente chegaram ao antigo hospital do Cartaxo, transportadas por carros particulares que passavam. “Vocês não têm noção do caos que se gerou depois”, conta Luísa aos colegas, recordando os momentos de aflição das pessoas, que iam sabendo da notícia, que se foi espalhando boca a boca, numa época em que os meios de comunicação estavam longe dos que conhecemos hoje. “Eram pais à procura dos filhos; miúdos a correr rua abaixo, desorientados, a gritar…”

Tempos de angústia e revolta
Estes momentos vividos entre alguns deles, de ambas as partes da turma, foram relembrados neste encontro, em janeiro de 2018, no Jornal de Cá. Pormenores e lembranças que nunca haviam conversado e que agora, adultos e muitos deles com filhos, os leva a reconhecer que muita coisa falhou naquele dia, como por exemplo o cheiro a gás que se sentia na sala e que a professora terá desvalorizado, e nos seguintes. “Nem os nossos pais foram à escola pedir explicações”, diz Luísa, ao que César lembra que “era uma sociedade completamente diferente, os nossos pais são daquela geração que ainda estava muito acomodada ao destino”. Para Rosabela “deveria ter sido a própria escola a fazer uma reunião com os pais de todos os alunos da turma para dar uma satisfação”, mas lamenta que “nem para os nossos pais houve apoio. Nada! Não houve sequer uma palavra. Ficaram completamente abandonados à sua sorte. Os nossos pais só se preocupavam em manter-nos vivos, em saber se sobrevivíamos, porque nós tivemos um tempo em que não se sabia. Os nossos pais construíram uma ponte em madeira para nos poderem ver, porque a secção de queimados não era no primeiro piso e nós não tínhamos visitas. Os nossos pais estiveram sempre sozinhos e, depois, quando começou a luta legal, porque foi mesmo uma luta, voltaram a estar sozinhos e também já fomos nós, que já éramos mais crescidos, que começámos a andar com as coisas para a frente. Não podemos dizer que conseguimos, porque não conseguimos. Aquilo que tínhamos em mente não foi conseguido, porque houve todo um percurso anterior que deveria ter sido feito e não foi. Os nossos pais deveriam ter sido acompanhados logo de início, houve muita coisa que poderia ter sido evitada. Muito aguentaram eles, que ouviram tanta coisa e não tinham como se defender. Não tinham suporte para se aguentar”. Luís Vasco concorda e recorda que “houve ali muito sacrifício pessoal”.

“Não foi uma indemnização, foi um acordo.
Na altura não pensámos em nada disto, nem sabíamos dos nossos direitos.”

Anabela Arcanjo

E só passados muitos anos, depois de apurados os factos e do Estado ficar como responsável pelo ocorrido, chegavam as indemnizações às vítimas com valores monetários relativos a danos morais, em 2003. Anabela reforça que “não foi uma indemnização, foi um acordo. Nós temos problemas de pele, e não só, que nos vão acompanhar a vida toda e isso sai-nos do bolso, porque aquela indemnização já lá vai. Se fosse hoje em dia, teria sido diferente. Na altura não pensámos em nada disto, nem sabíamos dos nossos direitos. Em parte, até quase que éramos acusados… Cada junta médica que nós íamos quase que nos apontavam o dedo, como se estivéssemos a fazer fita, do tipo ‘estás assim porque queres’… Eu estava ali e era culpada do acidente”.

Rosabela descreve uma das juntas médicas a que se sujeitou: “agarraram-me na mão e disseram-me para dobrar o dedo – é claro que estes dedos que tenho para cima não consigo dobrar para baixo, não consigo, não está lá o tendão. Mas os médicos insistiam: ‘dobre!’, a pegarem-me no dedo e a obrigarem-me a dobrá-lo. Isto foi horrível! Como se eu estivesse a fingir que não conseguia dobrar o dedo”. Resultado: enquanto alguns voltaram as costas aos médicos que os avaliavam, outros não quiseram mais voltar às juntas médicas para avaliação pela “prepotência” e “arrogância” que sentiram por parte dos médicos. “Fizeram-nos viver tudo vezes sem fim, parecíamos uns papagaios… E chegou a um ponto de saturação, em que fomos vencidos por exaustão”, reconhece Rosabela. Na altura do acordo, foi assinado um papel em que nunca mais voltavam a pedir nada ao Estado. Então, já não falando do trauma físico e psicológico que fica para toda a vida, e os cremes, a fisioterapia e outros tratamentos que precisam até ao fim da vida? Paulo Renato, por exemplo, diz ter desenvolvido uma úlcera na vista e Rosabela questiona até que ponto certos problemas de saúde que vão surgindo não derivem daquele acidente, afinal, “até morfina levámos, e a morfina destrói”.

“Temos de ir esquecendo. Há dias em que se consegue esquecer mais, mas há outros em que não se consegue, pura e simplesmente, esquecer”

Rosabela Delgado

Apesar de tudo, a esta distância conseguem rir-se disto tudo, mas Anabela lembra que “há colegas mais sensíveis que sofrem ainda bastante quando têm de enfrentar as pessoas. Há uns que levam isso de uma maneira, outros de outra, o que é certo é que todos os dias somos confrontados com isso. Eu ganhei a minha defesa, e brinco com isso, também para aliviar quem está do outro lado, que está assustado. Há que levar isto a sério, mas cada um, à sua maneira, vai-se defendendo. Hoje somos mais crescidos, compreendemos melhor o outro lado”.

“Temos de ir esquecendo. Há dias em que se consegue esquecer mais, mas há outros em que não se consegue, pura e simplesmente, esquecer”, reconhece Rosabela que, de quatro em quatro anos, acaba por ter de contar aos seus alunos o que lhe aconteceu. “Eu decidi que ia ser professora, mas eu lá pensei que depois tinha que lidar com miúdos pequeninos que iam ficar assustadíssimos quando me vissem pela primeira vez, principalmente as mãos, porque eu lido com as mãos. O que eu noto é que as crianças não são tão cruéis como muita gente diz, elas compreendem e aceitam. Mas perguntam e eu tenho que explicar o que aconteceu, mas de uma forma suave e quando me perguntam onde foi arrepio-me um bocadinho, porque foi numa escola. E numa escola não deveria ter acontecido. Ainda para mais porque é a escola para onde eles hão de ir. É muito complicado para uma criança de cinco, seis anos”.

Processo de consciencialização
E foram as crianças que ajudaram Anabela a lidar com a situação. “Quando as via a observar-me fazia de propósito para me meter com elas e dar-lhes o à-vontade necessário para fazerem todas as perguntas” e “da minha parte, eu tenho toda a tolerância possível e imaginária. Quando sou confrontada com isso tenho a maior paciência, coisa que em tempos não funcionou. Eu respondo, com toda a tolerância e sem tabus. Tenho esse problema resolvido, depois de passar por um processo de consciencialização, mas nem todos temos essa capacidade”, admite.

“Aparece sempre alguém que pergunta ‘o que é que foi isso?’”

Paulo Renato Tavares

Tal como Anabela, também Paulo Renato revela que “as crianças ajudaram-me nesse processo”, quando, diariamente, no seu restaurante é confrontado com a curiosidade de quem ali passa para almoçar ou jantar. “Aparece sempre alguém que pergunta ‘o que é que foi isso?’” E percebe bem que quando se retrai as pessoas ficam pouco à-vontade, mas se falar abertamente as pessoas sentem-se mais confortáveis.

Mas foram precisos muitos anos para ultrapassarem isso sozinhos e “se calhar não ultrapassámos”, reconhece Rosabela, revelando que “tornei-me numa pessoa muito revoltada e acho que vai aumentando com o passar dos anos. E chamo-lhe revolta porque não consigo encontrar outro nome”. Para ela, “tudo fugiu da normalidade neste processo, desde o princípio ao fim. Tudo o que aconteceu, desde o momento em que aconteceu, que já foi anormal; as coisas estavam num sítio anormal, aconteceu num sítio anormal, as pessoas foram acompanhadas anormalmente e continuaram a ser; foram indemnizadas anormalmente… Foi tudo anormal desde o início. Nem eu, com a idade que tenho, consigo avaliar isto normalmente”.

Hoje em dia, Anabela não tem qualquer problema em entrar na escola, mas não consegue entrar naquela sala. “Tive uma vez uma reunião na escola e só quando cheguei à portaria é que soube que era na ANG2. Passei à porta e começo a sentir as pernas a prender… Fiquei lá sentada e não ouvi nada”. Rosabela confessa que não consegue entrar na sala, nem sequer põe em causa entrar, como já aconteceu uma vez que foi convocada para vigiar um exame nessa sala. Também Paulo Renato sentiu algo estranho, que não consegue explicar, quando teve de entrar naquele corredor e se deparou com a sala. Mas para ele não foi difícil colocar os filhos lá a estudar. Já Luísa lembra que foi “extremamente penoso o meu filho ir para aquela escola, eu nem à porta daquela escola gosto de estar”. Tanto Luísa como Rosabela, se tivessem tido opção, não teriam lá colocado os filhos e Luís Vasco também desabafa que se tivesse tido filhos não os punha naquela escola.

“Foi extremamente penoso o meu filho ir para aquela escola.”

Luísa Lopes

Quase a terminar a conversa de mais de duas horas, Luís Vasco quis ainda saber o que sentiam os colegas quando ouviram falar dos incêndios que deflagraram em Portugal, porque, diz, “quando ouço essas notícias arrepio-me todo, porque sei o que as pessoas estão a passar, por saber que há mais pessoas a passar por aquilo que a gente já passou”. Todos dizem sentir o mesmo e, por outro lado, constatam que o País pouco evoluiu sempre que acontecem tragédias deste tipo. Por mais que se apurem responsabilidades, as vítimas ficam sempre a perder. Já para não falar do aproveitamento que é feito depois destas tragédias, como os peditórios, por exemplo.

“No nosso País fica-se à espera de que não aconteça”, diz Rosabela, lembrando que, no dia do acidente da escola, “as mangueiras de incêndio estavam ressequidas, nunca houve uma manutenção e a escola naquela altura era uma escola nova”. Mais, “a porta de saída de emergência da escada de caracol estava fechada à chave, eu saltei de lá de cima, porque já não tinha pele nas mãos para me agarrar, e porque um colega meu abriu a porta com um pontapé”.

O dia 25 de janeiro continua a ser, passados 33 anos, um dia marcante para todos. E se durante muitos anos só alguns elementos do grupo das vítimas se juntava neste dia para “celebrar a vida”, como refere Anabela que tem por hábito encontrar-se com o colega e amigo Rui Colaço, acabando, muitas vezes, por se encontrarem com outros colegas da turma, entre os quais o Paulo Renato, o Pedro Fialho e o Luís Vasco, desde o encontro dos 30 anos passados sobre o acidente, em que se juntou toda a turma, pretendem voltar a encontrar-se todos no futuro, sem separações. Rosabela diz que todos os 25 de janeiro dá os parabéns à Betinha, “mas gostava de se encontrar todos os anos com os colegas e até levar umas flores aos colegas que faleceram, vítimas do acidente”, como já fizeram outras vezes.

Terminada a conversa, todos pareciam mais leves. Para César foi um momento “muito interessante”. Os restantes concordaram e agradeceram o desafio do Jornal de Cá, porque “foi bom” este reencontro que, dizem, quase serviu de terapia.

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