Na época da expansão marítima de Castela, após a divisão do mundo decidida no tratado de Tordesilhas, com Portugal, os territórios das américas alimentaram lendas e a sede imensa de riqueza de quem as explorava. Foi assim que a partir da imagem fantástica de um sacerdote indígena, em terras da atual Colômbia, coberto de ouro a banhar-se num lago andino, originou versões de territórios vastos onde o metal precioso existia em quantidades imensas e pronto a enriquecer quem o fosse colher.
Dessa ilusão de riqueza e da sua busca foi a História trazendo inúmeros relatos e demandas de reis e conquistadores, fossem eles Alexandre o Grande a percorrer a Ásia profunda ou os saqueadores de túmulos do antigo Egito. Estando hoje praticamente tudo descoberto, os holofotes viram-se para o efémero mas igualmente atrativo mundo do espetáculo, onde reina o incontornável futebol, desporto nascido na velha Albion na década de 60 do séc. XIX e que se desenvolveu com a criação da FIFA, federação internacional de futebol em 1904 e mais tarde da UEFA, união das associações europeias de futebol, em 1954.
O campeonato de mundo de seleções iniciado em 1930 e vencido pelo Uruguai e a taça dos clubes campeões europeus desde 1955 e mais tarde denominada Champions League, a partir de 1992, colocaram o denominado desporto rei no centro das atenções mundiais, através da televisão e mais tarde pela incontornável internet, fazendo-o chegar a milhões de adeptos fervorosos dos seus países ou clubes.
O futebol tornou-se uma poderosa indústria, onde os valores de transações de jogadores vão crescendo até valores impensáveis há alguns anos e que escandalizam pela enorme desproporção entre os salários comuns e os montantes estratosféricos praticado nos clubes de topo. Para termos uma ideia do que falamos, a soma dos gastos em aquisições de jogadores pelos 50 clubes que mais investiram, ascende a uns absurdos 3,6 mil milhões de euros nesta janela do mercado de verão e note-se, que ainda não fechou. O Chelsea, um dos seis mais poderosos clubes de Inglaterra, despendeu cerca de 201 milhões de euros em aquisições de passes de jogadores, sendo seguido por mais sete clubes do mesmo país no top ten dos gastos. Os clubes portugueses surgem nesta lista dos top 50, com o Sport Lisboa e Benfica a investir cerca de 59,8 milhões, o Futebol Clube do Porto aproximadamente 47 milhões e o Sporting Clube de Portugal a rondar os 38 milhões de euros em passes de jogadores.
Abaixo destes 50 clubes que mais investiram, surgem outros 50 clubes que gastaram até 9 milhões, outros 50 que despenderam até 4,9 milhões e ainda mais 50 que investiram até 2,6 milhões de euros. Naturalmente os direitos de transmissão televisiva, de imagem, publicidade, bilhética e equipamentos, constituem um manancial enorme de receitas, gerando fluxos de investimentos bem maiores que alguns setores estruturantes da sociedade. Senão observemos. Os gastos em Saúde nos principais países europeus dão o contraponto a esta absurda mas aparentemente imparável aposta no entretenimento de massas e nos seus lucros gigantescos.
A poderosa Alemanha gasta em saúde cerca de 287 milhões de euros, uns impressivos 17% do PIB. O outro eixo europeu, a incontornável França, gasta cerca de 207 milhões de euros, 9% do seu PIB. Já Itália, a quarta economia da velha Europa, despende cerca de 130 milhões de euros na saúde, 15% do PIB. Portugal surge bem mais abaixo na tabela com uns modestos 14,5 milhões mas a representarem 8% do seu PIB.
E na educação, como estamos de investimento na Europa?
A Alemanha investe cerca de 168 milhões de euros, 11,5% do PIB, França gasta 127 milhões, quase 10% do seu PIB, Itália despende 75 milhões, 9% do PIB e Espanha cerca de 50 milhões, 10% do PIB. Portugal investe neste setor crucial cerca de 9,6 milhões de euros, 4,7% do PIB.
Já os EUA investem cerca de 660 milhões de dólares em educação, 13,4 % do PIB, a velha China aproximadamente 415 milhões, 11,5% do PIB e o Japão uns 145 milhões de euros, 8,5 % do seu PIB.
Temos assim que o valor médio dos gastos dos 50 clubes que mais investiram em compra de passes de jogadores, cerca de 73 milhões de euros, vale tanto como o montante que a Itália dedica à promoção, crescimento e sustentabilidade do setor da educação. E o valor que o Chelsea gastou em aquisições equipara-se ao que a poderosa França gastou em cuidados de saúde num ano. Dá que pensar esta desproporção de investimento e aplicação do dinheiro, entre a futilidade do futebol e os estruturantes, indispensáveis e cruciais setores da saúde e educação nos maiores países da Europa.
E que dizer da ajuda internacional a crianças e populações em risco contra doenças que todos os anos matam milhões de seres humanos? A humanidade viveu um momento histórico com a organização mundial de saúde, OMS, a recomendar e disponibilizar milhões de vacinas contra a malária, doença que a cada 2 minutos atinge uma criança com menos de 5 anos no mundo. Um programa piloto em alguns países africanos, Quénia, Gana e Malawi, com a administração de 1,7 milhões de doses, permitiram imunizar 650 mil crianças em risco de morte.
As campanhas desenvolvidas pela OMS nas últimas duas décadas, ajudaram cerca de 1,5 mil milhões de pessoas e evitaram cerca de 7 milhões de mortes.
Cada vacina terá um custo de alguns euros, pois as farmacêuticas disponibilizam lotes especiais para as campanhas mas mesmo que fizéssemos contas a preços de mercado, a rondar os 20 euros por vacina, conseguiríamos comprar cerca de 10 milhões de vacinas só com o valor que o Chelsea investiu em passes de alguns jogadores.
Não estão em causa os direitos que cada clube, empresa ou país têm em decidir onde gastar o seu dinheiro. Este exercício pretende tão só questionar as decisões das instituições mundiais e dos governos dos países mais poderosos, sobre por um lado permitir a lavagem de dinheiro no mundo do futebol e por outro, mostrar alguma relutância em apoiar a defesa da vida em países do mundo onde a diferença entre a vida e a morte depende na quase totalidade da solidariedade dos mais ricos.
Por último de referir que vivemos dois anos difíceis de pandemia, com mortes precoces às mãos do vírus e imensos constrangimentos na vida de milhões. Mas a referida malária continua a matar 400 mil pessoas por ano, sendo cerca de 270 mil, crianças.
Este mundo desigual tem cada vez mais abismos, sejam sociais, económicos, educacionais ou de acesso aos bens primários de saneamento e cuidados de saúde. A população crescente traz desafios enormes e a defesa da vida não pode ficar ao sabor de “uma bola que bate na trave ou entra numa qualquer baliza”. Prática de desporto sim, especulação e lavagem de dinheiros de origens obscuras, não. E bem hajam todos os que dentro do mundo dourado do desporto rei, apoiam, financiam e dedicam esforços na defesa da vida. E felizmente os exemplos são muitos. Resta que as instituições lhes sigam o exemplo, com regras de bom senso que tragam o futebol e a vida em geral para níveis aceitáveis e verdadeiramente democráticos. A vida agradece!