O Brasil capta muita da atenção dos radares mediáticos mundiais e desta vez não é pelo futebol nem pelo célebre carnaval mas tão só pelo futuro!
Nunca como agora falar em futuro fez tanto sentido na maior economia sul americana. As encruzilhadas da corrupção trouxeram este enorme país a um beco a ameaçar não ter saída. O fartar vilanagem a que as classes poderosas se têm entregue nestas últimas décadas criou clivagens sociais gritantes e o barril de pólvora ameaça explodir com enorme potência. Os estilhaços não pouparão ninguém e o desmoronamento social pode ser uma realidade.
É com estas premissas que o discurso demagógico e simples, de ideias fortes e impactantes cavalgou nas eleições e quase levou Jair Bolsonaro a ganhá-las à primeira. Face a um Haddad que não soube assumir os erros do seu mentor Lula da Silva, a aura mirífica de Bolsonaro tornou-se salvífica, num país a clamar por justiça, pão e paz.
Lula alimentou durante anos o sonho de retirar da pobreza milhões de brasileiros e não fossem os escândalos e essa missão teria tido maior sucesso. A verdade é que a pobreza extrema ameaça as ruas das grandes cidades ao gerar uma quase inevitável violência, potenciada por aqueles que quase nada têm e que pior que isso sentem que nada têm a perder. O valor da vida é assustadoramente baixo nas favelas cariocas e paulistas e o fenómeno estende-se como uma doença viral sem remédio à vista.
Mas afinal como chegou o Brasil até aqui?
As explicações são muitas e para todos os gostos, conforme os quadrantes de onde nascem mas há uma realidade maior que lhes subjaz e que minou desde sempre o progresso, esse mote que a bandeira ostenta mas que mais parece uma utopia nacional. Na verdade a multiculturalidade brasileira tem sido não a diversidade mas a génese de tensões sociais que poucos assumem na sua verdadeira dimensão.
Portugal no famoso “achamento” como parece ser agora politicamente correto afirmar, ajudou a criar a primeira versão da aldeia global, ao levar os escravos africanos para o lado oposto do Atlântico. Iniciou-se aí uma miscigenação de povos e raças e nada ficou como antes. Nasceram os mulatos pelo cruzamento da raça branca com a negra e os mestiços pelos cruzamentos com os povos indígenas, os primeiros brasileiros. A partir daí os cruzamentos não mais pararam e criaram uma legião de “novas” raças que mais tarde se foram generalizando pelo planeta pelas mãos de franceses, ingleses, espanhóis e holandeses. Afinal a Europa sempre esteve na génese de fenómenos dos quais se diz agora vítima. A história desmente-o e a culpa vem de trás. Muitos sabem-no, poucos a assumem frontalmente.
A mistura de povos não é em si um problema, ou não deveria ser mas diz-nos novamente a história, da qual parecemos só querer beber o que mais nos convém, esquecendo as sombras, que as tensões culturais sempre trouxeram guerras, genocídios, migrações forçadas e muito sofrimento e sangue derramado. Foi assim no Egito, na Pérsia, no império romano, nas invasões bárbaras, bem como nas múltiplas guerras intestinas com que a velha Europa se foi renovando e recriando.
Olhar agora para o Brasil não nos pode distanciar deste caldo gerador de onde todos os povos foram emergindo. Não podemos deixar de olhar para multiculturalidade brasileira e entender os seus fenómenos e fundamentos. O povo brasileiro tem no sul as grandes metrópoles onde confluem condições económicas e estratos sociais em opostos nunca aproximados. Os brancos de origem portuguesa, italiana e alemã, dominam grande parte da poderosa indústria e estão bem visíveis nas hostes políticas que Brasília ostenta. Os interesses estão lá e o seu poder nunca foi verdadeiramente posto em causa. A raça negra vive maioritariamente no estado da Bahia, com um orgulho bem vivo nas tradições ancestrais e que Salvador exibe como cartaz turístico e no nordeste habitam maioritariamente os mestiços e mulatos, gerados de todos estes cruzamentos étnicos de séculos. Naturalmente todos estão misturados nas megacidades de São Paulo, Rio de Janeiro e Santos e nos seus arredores mas esta separação geográfica existe e é notória a quem passeia no Brasil.
Mas uma vez mais esta realidade não é em si um problema ou não o deveria ser. Mas está na origem de muitos dos males que apoquentam aquele imenso país.
Assistir a uma reportagem em direto junto à favela da Rocinha, a maior do Rio de Janeiro, com entrevistas não editadas, diz-nos muito do que o povão, essa legião de desapossamos que vive no limiar da sobrevivência, pensa e sente sobre o país. Dizia uma moradora a viva voz “eu sou negra e favelada” para logo rematar com um cortante “ aqui a esperança é acordar no dia seguinte”. Sintomático.
Este imenso povo sem crédito nem esperança, assistiu a escândalos sucessivos levados a cabo pelos mesmos políticos que lhes prometeram uma vida melhor. A distância entre a pequena criminalidade de sobrevivência, nem sempre isenta de violência, e a criminalidade de colarinho branco que o famoso processo Lava-Jato trouxe a público, é bem mais próxima do que muitos supõem e outros tantos desejariam. Paredes meias com o pequeno esquema e furtos, vivem a corrupção nas altas esferas, os jogos de interesses e o nepotismo, pondo a nu as faltas gritantes de ética, sentido de estado e serviço à causa pública. A política brasileira mostra o pior da representatividade democrática, e que os eleitos se servem do poder recebido e pouco fazem para servir verdadeiramente quem os elegeu. Os perigos são evidentes e a violência crescente mostra a face negra do descontentamento social gerado nas clivagens cada vez maiores entre as classes. O Brasil tem pouco mais de 2% da população mundial mas 15% dos homicídios planetários! Assustador? Muito mais do que isso para milhões de brasileiros que convivem diariamente com a morte e a violência generalizada nas ruas.
A distância geográfica não nos pode deixar indiferentes a este fenómeno, não só pela solidariedade entre povos mas também pela aprendizagem que podemos e devemos fazer com tudo o que vai sucedendo do lado de lá do atlântico. A Europa é multicultural e racial e tem sabido, com maior ou menor dificuldade, lidar com as tensões e diferenças, fazendo por integrar e fomentar a igualdade de oportunidades. As recentes migrações e fenómenos xenófobos que têm acontecido em diversos países, mostra-nos que não há realidades imutáveis e que a paz é e será sempre uma missão eterna, um “working progress” civilizacional, essencial para que o tal do progresso possa ser não apenas uma palavra vã mas um valor real, objetivo e possível para todos.
Lembrando a velha sabedoria popular, devemos sempre ter presente que nas costas dos outros vemos as nossas, o que hoje é verdade amanhã poderá não o ser e que quem semeia ventos colhe tempestades. Muitos mais adágios poderiam ser eleitos mas acima de tudo cumpre entender que o Brasil de hoje espelha muito do que a civilização moderna tem vindo a construir. E nestas edificações cabem o melhor da ciência e bem estar mas também muitos dos ignóbeis muros que vão espartilhando esta aldeia global.
Haja esperança Brasil.