Vão cumprir-se, a 9 de abril, cem anos desde a batalha onde mais soldados portugueses tombaram após Alcácer Quibir. Poucos meses antes do armistício que punha fim ao conflito que ficou na história como a guerra das trincheiras, as tropas alemãs fizeram uma ofensiva brutal nas imediações do rio Lys, junto às linhas que durante anos separaram alemães e aliados numa guerra de nervos, avanços e recuos, entre trincheiras cavadas com suor, sangue e lágrimas pelos estafados soldados aí estacionados até serem rendidos. Foi assim com o contingente português do CEP, o corpo expedicionário Português, enviado desde Tancos diretamente para a frente de batalha. Na noite da tremenda ofensiva alemã morreram mais de 600 soldados e mais de 6000 mil terão sido feitos prisioneiros, sendo levados para campos de concentração alemães. O número de feridos, sempre enorme, nunca foi determinado, mas a presença dos bravos maqueiros por entre as trincheiras terá contribuído decisivamente para que muitos sobrevivessem e pudessem regressar a Portugal.
Recordo nas inúmeras visitas à casa dos meus avós maternos, perto de Rio Maior, onde nasci, de ver uma velha espingarda ali guardada e que pertenceu ao meu bisavô Gerardo, de seu nome e nascido no concelho das Caldas da Rainha, no Landal. Foi aí, ainda de tenra idade, que fiquei a saber que tinha estado na Grande Guerra, como foi conhecida até haver uma segunda e que assim a intitulou como primeira. Foi maqueiro e apesar de não combater ativamente tinha na sua posse uma espingarda de modo a defender-se e poder intervir se assim fosse necessário. Foi dos sobreviventes e não tenho ideia de ter estado preso. Regressou à pátria e pôde ver crescer a minha avó Lídia, dando assim sequência a uma família que represento com orgulho. Na família vieram mais tarde a participar na guerra colonial, o meu pai em Angola e o meu tio materno na Guiné. Ambos regressaram ilesos apesar dos riscos e sobressaltos próprios destes conflitos. Uma vez mais, o regresso do meu pai permitiu que nascesse o meu irmão e quatro anos mais tarde eu próprio. O do meu tio, que nascessem os meus três primos com quem muito convivi em tenra idade e mantenho saudável ligação.
São estas vicissitudes que marcam a história de famílias inteiras e merecem ser lembradas e honradas, num país que ainda não se reconciliou com as suas memórias coletivas e as feridas abertas por uma descolonização mal conduzida, por um regime vetusto e sem melhoras no dealbar da jovem democracia. Os milhares de heróis, que muito jovens eram enviados para conflitos que não compreendiam, foram autêntica carne para canhão e tantos tombaram sem poderem alimentar sequer a chama da esperança num futuro melhor. Muitos dos sobreviventes ficaram marcados pelas memórias brutais e das quais nunca se libertaram inteiramente. E sentir que entregamos à lei da vida, que é a da morte, o esquecimento dos nossos briosos antepassados, causa um sentimento de estranha revolta interior pelo desassombro e ligeireza com que tratamos o nosso passado e todos aqueles que nos permitiram existir.
Este país e o seu nobre povo merecem que a nossa história grandiosa seja devidamente enaltecida e vivida com orgulho e enorme respeito por todos os que nos antecederam e permitiram que continuássemos a saga heroica de Afonso Henriques, fazendo de Portugal a mais velha nação unificada da velha Europa.
Pela minha parte faço aqui uma singela homenagem a todos os bravos que lutaram pela liberdade e entregaram o seu labor e vidas em prol dos ideais nascidos na revolução francesa e fazem do nosso continente o arauto das liberdades e garantias que damos como adquiridas, mas que tanto estão em perigo num mundo em mudança e assomos tirânicos em crescendo.
Ao maqueiro de La Lys deixo aqui uma justa homenagem pelo seu esforço em prol da vida dos seus compatriotas. Ao meu bisavô Gerardo o meu agradecimento pela bravura que lhe permitiu voltar e dar vida aos que ajudou a existir. Porque a história é feita de milhares de desconhecidos que nunca figurarão nos livros das escolas ou compêndios da especialidade. Mas que são o sangue condutor das nações e dos seus desígnios maiores. Honrem-se, pois, para que com o seu exemplo possamos avançar sem sucumbir a tempestades como aquelas em que tantos tombaram.