Agora que vimos o verdadeiro rosto da Europa, assustador e punitivo, agora que milhares de refugiados dão à costa em todos países do sul fugindo da morte, agora que o lado mais cruel do mundo se revela todos os dias, vem a propósito lembrar as palavras dum grande escritor moçambicano, Mia Couto. Disse ele, a propósito dos problemas africanos, na Universidade Eduardo Mondlane, que “à porta da modernidade, há sete sapatos sujos que necessitamos descalçar ”, referindo-se a África. Fazendo um paralelo com a nossa vida, aqui ficam “os sete sapatos sujos que também nós temos que descalçar” se queremos ter esperança e torná-la realidade:
1 “A ideia que os culpados são sempre os outros e nós somos sempre as vítimas”. Tem toda a razão. Cada um de nós tem responsabilidade pelo mundo em que vivemos. Porque se fecha na sua vida e ignora o que (parece!) que não lhe diz respeito directamente. Ora o futuro não é uma fatalidade. Somos nós que o construímos, todos os dias.
2 “A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho”. Talvez por isso haja tanta corrupção. Admiramos mais a “esperteza” do que o trabalho.
3 “O preconceito de que quem critica é um inimigo”. O espírito crítico, as diferentes opiniões fundamentadas, estão na base do nosso avanço, pessoal e colectivo.
4 “A ideia de que mudar as palavras muda a realidade”. Isto vem muito a propósito nas campanhas eleitorais, e não só. Exijamos, de nós e dos outros, actos concretos e não apenas palavras. Essas, leva-as o vento.
5 “A vergonha de ser pobre e o culto das aparências”. Apontar os pobres como responsáveis do que lhes acontece leva-nos à “pena” e à “caridadezinha” ocasional. Somos o país mais desigual da OCDE. Ai como se vive das aparências, todos o sabemos! Vergonha aos ricos quando a sua fortuna vem da exploração alheia.
6 “A passividade perante a injustiça”. Aquilo a que fechamos os olhos não deixa de existir. Quer queiramos, quer não, todos somos responsáveis pelo mundo em que vivemos. E o que fazemos nós para o tornar melhor, mais justo, mais solidário?
7 “A ideia de que para sermos modernos temos que imitar os outros”. Aprendi cedo que não andamos aqui por ver andar os outros. As pressões para a conformidade são muito fortes, depende de nós contrariá-las. Todos pertencemos à espécie humana mas somos todos diversos. E quando a diferença traz consigo privilégio ou estigma passa a ser desigualdade.
Se pensarmos nisto, todos podemos trabalhar para um mundo mais justo, mais solidário, com um rosto que não seja o do castigo, da pobreza, da humilhação e da vergonha. Um mundo com esperança. Um mundo melhor.