“Invictamente”, por João Fróis
François, duque de la Rochefoucald, aristocrata francês do séc. XVII, ficou conhecido pelo seu livro “Reflexões ou sentenças e máximas morais”, tendo transformado em género literário epigramas e máximas sociais, em tempos conturbados, contra o cardeal de Richelieu e de guerra civil em França. Assumido pessimista sobre a humanidade, atribuía as manifestações de bondade e gratidão a necessidades maiores de estima e admiração social. Crítico da nobreza, considerava que as qualidades desta, as falsas virtudes, moviam-se pelo egoísmo e hipocrisia, atributos inerentes a todos os homens.
Derivada do latim hypocrisis e do grego hupokrisis representava a atuação em teatro, o fingimento próprio do ator em cena. Só mais tarde derivou para o fingimento social de quem se arroga ser o que não é.
Ora estes tempos conturbados que vivemos atualmente exibem uma profusão de comportamentos públicos e privados de extrema e requintada hipocrisia, a lembrar-nos que os mais de duzentos e cinquenta anos que nos separam do duque pessimista, em muito pouco evoluíram nas virtudes e defeitos da condição humana e na gestão da imagem social.
Atentemos no caso de Durão Barroso. Para lá das razões que se podem aferir da sua saída para o polémico Goldman Sachs, está agora a lume um ataque fervoroso à sua dignidade pessoal, pondo em causa o seu percurso e havendo já uma perda efetiva de direitos, ligados à sua anterior função política. Noutro quadrante vemos António Guterres, com uma imagem política e social impoluta e menos questionável, a ser contrariado em jogos sujos de bastidores para jogarem outras peças mais a jeito das fações centro europeístas alemãs, ou dos interesses globais da omnipresente Rússia. Os EUA vão assistindo a tudo com a benevolência própria de um fim de mandato de um presidente que não deseja manchas curriculares, não pondo em causa esta viciação das regras do jogo e que brevemente veremos que real impacto terá.
Pelo meio, todos os dias saltam escândalos mais ou menos relevantes sobre os percursos políticos dos grandes estadistas ou agentes do poder. Christine Lagarde, a toda-poderosa diretora do FMI está no centro do furacão com suspeitas de tráfico de influências e corrupção. Aliás a palavra de ordem é agora mais do que nunca este uso ilegítimo de funções para obtenção de ganhos em favor próprio. Olhemos o Brasil e o absurdo processo de destituição de Dilma Roussef, movido e alimentado pelo seu antigo aliado, agora presidente em exercício. Se mais não fosse, esta sucessão de acontecimentos à escala nacional revela a assunção despudorada da hipocrisia como comportamento aceitável nos meandros da política internacional. Buscando inspiração do duque moralista, a velha máxima de que “os fins justificam os meios”, parece ser a pedra de toque de toda a ação política mundial, atropelando-se a dignidade individual, o direito ao bom nome e o respeito pela privacidade, pelo gume afiado da espada inquisitória da suprema hipocrisia que para aliviar dores de uns, decapita impunemente os outros, esses “odiosos” corruptores e viciadores das boas práticas políticas e sociais. É cada vez mais complexo alvitrar uma opinião assertiva e bem fundamentada sobre quem é efetivamente o quê, neste caldo podre em que a política e a economia se tornaram. Se sempre houve jogadas de bastidores e movimentações de interesses obscuros, hoje em dia assistimos a uma “saudável” exposição dos mesmos mas que paradoxalmente surge envolta em nebulosas dúvidas existenciais sobre a real dimensão do monstro. Erdogan cria uma manobra de diversão para lucrar com a vitória e limpar tudo e todos os que suspeita de estarem contra o seu regime. Maduro insiste em se manter na cadeira do poder quando levou o país à bancarrota e aos caos social. Trump cavalga o alavão xenófobo e promete “limpar” os EUA de tudo (e todos) os que estão “a mais”. A hipocrisia assume diferentes rostos e nuances mas vai crescendo e fazendo vítimas em massa, numa senda ciclópica em que o clima aquece como nunca, os sinais de alarme soam a rebate mas ninguém parece querer ouvir e em que nunca como hoje o legado para as gerações futuras está posto em causa. Pelo meio jogam-se cartas de baralhos estafados de tão gastos numa Europa a lamber as feridas de um anunciado Brexit.
As ameaças sobre as economias mais frágeis, onde Portugal continua a figurar, continuam, os separatismos ideológicos grassam e as divisões acentuam-se. O candidato à frente nas sondagens no país das tulipas promete fechar mesquitas, proibir vestes e expulsar muçulmanos. Os radicalismos de uma Europa ariana estão a acordar de longa letargia e nada irá ser como dantes. Os muros de betão e arame farpado na Hungria já dividem e separam os que procuram os ideais e segurança do velho continente. Há sinais de escravidão, isolamento social e pobreza galopante onde antes não se via. Inquietações sociais, lutas pela sobrevivência e demandas existenciais a roçar a iniquidade. E os lobbies financeiros sem rosto nem remorsos continuam a engordar, numa senda hipócrita de materialismo absurdo onde a humanidade se esgota e perece. Se isto não é o Inferno, andaremos lá muito próximos. Até porque besta como o Homem não há outra!!