O passageiro

Por João Fróis
Este sábado, passaram 41 anos da tragédia maior da política contemporânea, em que entres as vítimas da queda da pequena aeronave, figuravam Francisco Sá Carneiro e Adelino Amaro da Costa. O primeiro era então primeiro ministro, eleito pela Aliança democrática (AD) e o segundo insigne deputado da assembleia da República pelo CDS.

Sá Carneiro, fundador e líder do Partido Popular Democrático (PPD), e que em 1976 passou a Partido Social Democrata (PSD), foi deputado e percursor da eleição do presidente da República por sufrágio universal, bem como em 1970 da consagração constitucional de um sistema de direitos, liberdades e garantias tais como as conhecemos hoje. Inspirado pelos sistemas democráticos da europa ocidental, preconizava uma sociedade não confessional, menos estatizada e com foco na iniciativa privada, defensora da liberdade e assente na justiça social.

Eram tempos de transição entre o estado Novo marcelista e a democracia, com os perigos da viragem à esquerda e da coletivização de inspiração soviética que o 25 de Novembro de 1975 impediu. Foi o então presidente da República, Ramalho Eanes, que liderou esse movimento determinante nos destinos de um país em busca de uma identidade coletiva após décadas de ditadura e fechamento ao mundo.

Francisco Sá Carneiro era nessa noite fatídica um mero passageiro de uma aeronave com destino à sua cidade natal, o Porto. Tenha sido um acidente ou um atentado, a verdade é que nem o facto de ser primeiro ministro o salvou das circunstâncias funestas de ser apenas, tal como as outras vítimas fatais, um mero passageiro.

Passados 41 anos assistimos a um lamentável episódio em que um ministro em funções, face a um trágico acidente automóvel em que a viatura em que seguia atingiu mortalmente um trabalhador dos serviços de manutenção da autoestrada, afirmou sem pejo que era “apenas” um passageiro. Era efetivamente conduzido mas com essa afirmação que repetiu várias vezes, pôs a nu as debilidades do exercício político.

E foi apenas com o recente despacho do Ministério Público onde constavam da acusação, a velocidade real em que a viatura circulava, de 163 km/hora e o facto de os trabalhos na via estarem devidamente sinalizados, ao contrário do que o ministro sempre afirmou, que finalmente se demitiu. Saiu no entanto pela porta pequena, manchando sem necessidade a obra que desenvolveu no ministério da administração interna, já de si sujeito a uma pressão mediática enorme após os graves e mortais incêndios de 2017.

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Não está em causa a filiação partidária pois todos os partidos erram. O que é intolerável é haver um ministro, alto representante do estado e dos cidadãos, mentir e insistir na mesma, refugiando-se no segredo de justiça e não assumir desde logo as consequências de uma ocorrência que poderia ter sido evitada se a lei fosse cumprida. Além de a viatura circular a mais 40 km/hora que o limite legal, não existiam as circunstâncias excecionais que permitem a deslocação a velocidade acima do limite legal, que exigiam que a mesma assinalasse a sua marcha com luzes azuis, o que não aconteceu. Para mais o ministro pode sempre atuar diretamente sobre a condução, impondo a sua autoridade e a defesa da lei e não se reduzir a um mero passageiro sem poderes para agir.

No meio de tudo isto o circo mediático pareceu esquecer o mais importante, a perda lamentável de uma vida humana. E quando o bem supremo que é a vida, não é devidamente acautelado por todas as instâncias do estado, então são os pilares essenciais da democracia que estão em perigo de colapso, pondo em causa toda a luta pela liberdade, direitos e garantias que nos regem e são o cerne da Constituição da República.

Sá Carneiro e todos os que com ele viajavam foram vítimas de um acidente de aviação e nada puderam fazer para acautelar ou impedir o trágico acidente.

No acidente de viação do ministro da administração interna, não só os riscos podiam e deviam ter sido acautelados ao circularem a velocidade excessiva, bem como podiam ter sido evitados se a viatura tivesse as luzes indicadas para o efeito e circulasse na via direita, tal como é imposto pela lei.

Ser um mero passageiro é não ter qualquer interferência na condução ou operacionalidade do meio de transporte onde nos deslocamos. Coisa que em boa verdade e sendo uma viatura de estado para transporte particular de um representante do mesmo, não se aplica a quem é transportado. Sob pena de incutir toda a responsabilidade ao condutor quando este obedece a ordens diretas de quem conduz. Mais lamentável é perceber que os casos em que as viaturas do estado circulam a velocidade excessiva são inúmeros e nem todos têm a escusa, que a lei prevê, de serem deslocações urgentes e prioritárias. Os abusos existem por quem não os devia praticar e pior, são tolerados pelos agentes do estado. Estado esse que é implacável junto dos seus cidadãos, aplicando multas e coimas tantas vezes de modo moralmente injustificado.

Como reflexão, a sociedade portuguesa tem de uma vez por todas exigir que quem elege seja o primeiro a defender a lei, sujeitando-se a ela sem exceções. Insistir em defender e ocultar os abusos de poder, os facilitismos funcionais, corporativistas e de interesses partidários, é continuar a promover o atraso democrático e o fosso face aos parceiros europeus, seja nos direitos sociais bem como no desenvolvimento económico e na aplicação da justiça. A culpa não pode continuar a morrer solteira em Portugal. O culto da responsabilidade tem de ser uma pedra basilar da democracia lusitana. Este é um dos grandes desafios que se colocam a Portugal e a cada um de nós. Façamos, pois, a nossa parte, começando por não ser coniventes com os atentados aos direitos, liberdades e garantias pelos quais tantos lutaram ao longo de décadas, inclusive o ilustre passageiro do trágico acidente de Camarate em 4 de dezembro de 1980.

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