O que pensam os sacerdotes do concelho sobre os casos de abuso sexual de crianças

Choque, desolação e estupefação foi o que sentiram os padres Arlindo Miguel e Miguel Ângelo quando foi divulgado o relatório sobre os casos de abusos sexuais de crianças na Igreja Católica Portuguesa.

O relatório divulgado publicamente, em fevereiro, pela Comissão Independente sobre os casos de abusos sexuais de crianças abalou a Igreja Católica Portuguesa. Na sequência desta polémica fomos ao encontro de Arlindo Miguel e Miguel Ângelo, padres das paróquias do concelho do Cartaxo, para saber como reagiram e o que pensam sobre este assunto. Falámos com os párocos antes da conferência de imprensa, desta sexta-feira 3 de março, onde a Conferência Episcopal Portuguesa revelou a posição da Igreja Católica Portuguesa sobre o relatório apresentado pela Comissão Independente.

O padre Arlindo Miguel tem 43 anos, 25 deles dedicados à Igreja Católica e nove a representar as paróquias do Cartaxo, Vale da Pinta, Ereira e Vila Chã de Ourique. Inicia a conversa explicando que passou “o dia inteiro colado à televisão e não foi o número que me chocou, mas sim os relatos, a crueldade para com as vítimas, o tirar a inocência…, era como se estivessem a matar uma pessoa”. Fez questão de falar no assunto logo na missa seguinte e ainda que algumas pessoas o tenham abordado sobre isto sente que “as paróquias, apesar disto tudo, manifestaram comunhão com o prior, portanto há aqui um misto. As pessoas ficaram muito chocadas, mesmo nós próprios, ficámos muito chocados. Foi desolador para todos nós”, conta o padre Arlindo Miguel.

As pessoas ficaram muito chocadas, mesmo nós próprios, ficámos muito chocados. Foi desolador para todos nós.
Arlindo Miguel

Choque e desolação foi o que sentiu quando saiu esta notícia, porque para o pároco “esta era uma realidade desconhecida nas nossas localidades”. O padre Arlindo Miguel conta que “na paróquia de onde eu sou original isto nunca me passou pela cabeça, pois eu tive um relacionamento perfeitamente normal com os párocos. Mesmo no Cartaxo, as pessoas dizem que olhando para a história dos meus antecessores, não notam sequer um caso que pudesse ter acontecido”. Quando entrou para o seminário, com 19 anos, revela-nos que tinham uma ideia muito geral de três ou quatro casos mais mediáticos que apareceram, mas longe de poder ser comparado com isto que agora veio a público. Demonstra não se incomodar em dar a sua opinião sobre este assunto.

“Houve má gestão de alguns casos” por parte da Igreja, pois o que deve ser feito “é averiguar o que se passou e dispensar do sacerdócio caso se verifique a queixa”. Neste sentido, considera que toda a comunicação da igreja “foi mal gerida e compreendida como hesitação, por não ser simples”. Quanto à conferência episcopal, o padre Arlindo considera que os bispos “tentaram dar a máxima informação possível, mas não correu bem, porque a informação devia ter sido mais fácil e concentrada. Isto é tudo um campo de batalha que está aberto e estamos todos a consciencializarmos disto. Uma das coisas que eu acho que é bom, que resulta deste relatório e da iniciativa do Papa Francisco com a conferencia episcopal portuguesa, é para consciencializar a Igreja, mas também a sociedade e, portanto, eu acho que estamos todos mais despertos”.
Na sua opinião, “os bispos dizem a verdade quando admitem que não sabiam” ou então “não tinham categorias mentais imaginativas para perceber isto, pois habitualmente já são pessoas de muita idade e nunca lhes passou sequer pela cabeça e, por isso, não consideravam pertinente. Quando estamos no terreno, temos uma ideia diferente das coisas”, frisa o padre Arlindo.

O padre Miguel Ângelo tem 39 anos e quase 10 anos a representar as paróquias de Pontével, Lapa, Valada e Vale da Pedra. Numa fase inicial, a sua primeira reação foi de apreensão e estupefação, mas reconhece que este relatório “é uma realidade difícil, necessária e muito importante, tanto pelas vítimas como para a consciência da Igreja”.

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Não teve ninguém a questioná-lo diretamente, mas sentiu que era importante falar na missa, “naturalmente porque achei que é um assunto pertinente na vida da Igreja e não devemos ter receio de tocar no assunto”, explica o padre Miguel.

Conta que nos seus tempos de seminário, em 2010, este assunto foi mencionado pelo Papa Bento XVI, derivado aos acontecimentos em Boston. Em Portugal, garante que nunca teve conhecimento disto, fora uma notícia ou outra que ia aparecendo, mas “mais que isso não”. Os números apresentados especulam cerca de 500 vítimas, e o padre Miguel Ângelo considera que haverá mais, algumas pessoas que ainda não ganharam coragem para falar e outras tantas que faleceram, sem nunca dizer nada.

Estes abusos sexuais de menores ocorreram num contexto em que a Igreja Católica, os seminários e as congregações religiosas funcionavam “às vezes como escola pública”, esclarece o padre Arlindo Miguel. “Naquela altura, em todo o lado, os pais escolhiam colocar os filhos nos seminários ou nas congregações religiosas para lhes proporcionarem uma educação ou uma via profissional que era a via religiosa consagrada, hoje em dia os padres vão por vocação”.

Só a suspeita já é razão para suspender o sacerdócio.
Miguel Ângelo

Para o padre Miguel Ângelo, é necessário que não se coloque a Igreja “toda no mesmo saco”, tal como os padres. Inclusive, pediu a compreensão dos seus paroquianos pois não iria mudar a sua forma de agir com as crianças e jovens, visto que durante todos estes anos sempre foi uma figura próxima dos mais pequenos e da catequese. Lembra que a questão da transparência é essencial, e que neste momento há indicações no sentido da prudência, por exemplo de numa catequese ou numa conversa, ter a porta sempre aberta.

O padre Miguel Ângelo considera que no passado, a Igreja do ponto de vista moral, falhou. “As linhas de interpretação eram diferentes, tendo em conta o que se discute atualmente. Encarava-se o próprio crime contra a igreja em si e depois havia intenção de proteger a igreja, a sua reputação e o seu nome, assim acabou por não se proteger as vítimas”, considera o pároco.

Na sua opinião, a Igreja devia ter feito mais pelas vítimas, tanto para as proteger como para lhes trazer justiça e por essa razão deviam ter tido outros procedimentos com os padres abusadores. Nestes casos, o que deve ser feito é comunicar às autoridades, realizar-se a investigação e se verificado, apresentar queixa no ministério público. “Só a suspeita já é razão para suspender o sacerdócio”, frisa o pároco Miguel Ângelo.

Agora é essencial que se reúnam os meios que estão disponíveis para ajudar as vítimas deste crime, que precisam de ser ajudadas tanto na igreja como na sociedade. É necessário acompanhamento, não só nestes casos da Igreja como em todos os casos de abuso e sugerem que uma opção é a criação de uma linha verde para estas vítimas, reunindo profissionais de vários meios que possam criar lugares seguros para estas pessoas serem ajudadas.

É uma realidade que esta profissão, ainda há pouco tempo, tinha uma credibilidade e proteção social importante, portanto era mais difícil a suspeição. “Foi um passo muito importante, mas isto é um problema da sociedade em geral”, garantem os sacerdotes.

Abusadores: patologia ou abuso de poder?
Nesta questão, os nossos párocos têm opiniões divergentes. Para o padre Miguel Ângelo, não é o poder que está em causa, mas sim a patologia que já existe nestas pessoas. “O destaque, ou o poder, podem conferir uma falsa noção de impunidade e isso percebe-se, mas o relatório aponta a manipulação, antes e após o abuso”, considera o pároco.

Quanto aos abusadores, o padre Arlindo Miguel tem uma opinião muito vincada, “Todos aqueles que exercem influência e que se sentem noutro patamar de persuasão do outro para tentar coagir, são abusadores. Inferiorizam a pessoa. Um abusador é um todo-poderoso diante de alguém que é mais vulnerável. Isso não significa que a causa seja do celibato, não é, resulta sobretudo disto, de se acharem como Deus, de serem todos poderosos, de tal modo que podem tomar conta da alma e do corpo da outra pessoa, mas isto não é nada cristão.

Para mim o abuso sexual deriva da autoridade sem limites.

Estamos a falar de uma autoridade que é exercida no confessionário ou num ambiente mais privado e restrito, onde se está sozinho com a vítima.

Não considero que isto possa derivar do foro psíquico, alguns casos sim, isto até está estudado, afetividade mal resolvida, e também pouca experiência afetiva”, refere o padre Arlindo Miguel.

Conseguirá a Igreja Católica reerguer-se?
Os padres do nosso concelho, acreditam que a Igreja Católica vai conseguir reerguer-se quando os abusadores forem suspensos e os bispos que encobriram estes casos, renunciarem. “Um encobrimento ou ocultação é uma renúncia, um abuso é uma suspensão, são estes os termos técnicos”, explica-nos o padre Arlindo Miguel.

Para ele, um ponto importante que resulta deste relatório é a consciencialização da Igreja, mas também da sociedade em geral, “estamos todos mais despertos e, por isso, tenho a certeza que o Papa não vai fugir a este assunto durante as Jornadas Mundiais da Juventude”.

Para o padre Miguel Ângelo, as Jornadas Mundiais da Juventude vão ser uma oportunidade de a Igreja limpar a imagem, mostrando que “aqui não há lugar para padres abusadores e que se houver queixas rapidamente se procedem às investigações e à suspensão desses sacerdotes. É possível que o Papa Francisco se queira encontrar com as vítimas, até porque já o fez noutros casos, e na minha opinião esse encontro é importante”.

O padre Miguel Ângelo acredita que a Igreja vai “sair mais forte” quando conseguir arranjar uma forma de perceber e identificar estas patologias, na questão da admissão ao seminário e no processo de formação dos padres, de modo a evitar que estas situações se repitam.

O padre Arlindo Miguel considera que falarmos sobre este assunto e tomarmos consciência desta realidade é muito importante, ainda que tenha algumas dúvidas quanto a alguns números apresentados nas tabelas do relatório. Receia que esta polémica se torne num inibidor, mas espera que a Igreja Católica reflita com consciência, para mudar e saber o que se pode fazer relativamente ao exercício da autoridade e da proteção dos menores que têm nas instituições religiosas.

Isuvol
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